Avessa aos festejos, ela havia se abrigado em casa, e passou a noite ouvindo música — atividade que, segundo ela, faz parte de seu processo criativo.
“Às vezes, faço pesquisas sonoras para formar uma espécie de acervo sensível”, afirma. “Isso me ajuda na escrita, e naquela madrugada resolvi buscar algumas coisas no YouTube.”
Dali a alguns minutos, escutaria um trecho de Carmen, ópera em quatro atos composta pelo francês Georges Bizet (1838-1875).
O vídeo a intrigou — continha apenas o retrato onírico de uma mulher com pele azul; uma faixa de áudio, gravada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro; e o nome da intérprete, a mezzo-soprano Maria D’Apparecida.
“A voz era linda, e fiquei curiosa por ser uma cantora brasileira da qual eu nunca tinha ouvido falar. Então, caí noutro vídeo, dela se apresentando em Paris“, lembra Dione.
Trata-se de uma filmagem em preto e branco, realizada pela televisão francesa num domingo, 2 de janeiro de 1966.
D’Apparecida, sorridente e acompanhada pelo pianista Jack Diéval, anuncia em português: “Esta noite, estou aqui entre vocês para cantar uma melodia do meu Brasil.”
Na sequência, a dupla executa Tamba-Tajá, canção de Waldemar Henrique inspirada numa lenda indígena do povo Macuxi. Pouco a pouco, a câmera se aproxima, e o rosto da intérprete ocupa todo o quadro.
Como Dione, Maria D’Apparecida era negra.
“Por razões óbvias, quis saber mais sobre aquela mulher”, conta a dramaturga.
“Mas quando joguei o nome dela no Google, fiquei revoltada com o que li.”
A cantora morrera no dia 4 de julho de 2017, aos 91 anos. Sem filhos nem herdeiros, vivia em Paris há mais de meio século e mantinha-se longe das ruas — suas últimas apresentações teriam ocorrido na década de 1990.
Isolada no próprio domicílio, sem acesso à internet, escrevia regularmente e costumava se ajoelhar em frente a imagens de santos. Ela não atendia o telefone e devolvia todas as cartas que chegavam do Brasil.
O contato com o mundo externo se dava exclusivamente pelas visitas de uma empregada, que batera à sua porta naquela terça-feira, às 13h30.
A patroa, tomando banho, lhe pediu que voltasse mais tarde — e não respondeu mais. No dia seguinte, vizinhos se queixaram da água escorrendo de seu apartamento. O corpo de Maria D’Apparecida flutuava na banheira.
“Moro em Paris há 38 anos e nunca tinha ouvido falar na Maria D’Apparecida”, afirma a jornalista sul-mato-grossense Mazé Torquato Chotil.
“Um pianista brasileiro, amigo do meu marido, veio almoçar aqui em casa e perguntou se a gente tinha visto uma postagem sobre ela nas redes sociais.”
O Consulado-Geral do Brasil veiculara um anúncio, duas semanas após o falecimento. O corpo da cantora permanecia no Instituto Médico Legal de Paris, e a entidade diplomática tentava contatar seus familiares. Caso ninguém se apresentasse, D’Apparecida seria enterrada como indigente.
“Daí fui pesquisar a carreira dela”, relata Mazé. “Mas senti que havia pouquíssima informação disponível.”
Para seu espanto, a mezzo-soprano surgia em fotos com Heitor Villa-Lobos, Baden Powell, Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
Relatos davam conta de que se apresentara na Ópera de Paris, a mais tradicional companhia do gênero na França.
Carlos Drummond de Andrade dedicou-lhe um poema, dizendo: “Tua voz caminheira nos conta do que paira além da ciência dos Conservatórios e do tratamento operístico da vida. É uma voz que vem das entranhas do vento e dos coqueirais, do sigilo dos minérios e das formações vulcânicas do amor.”
A jornalista foi tomada pela dúvida: “Fiquei me perguntando como é que alguém dessa importância havia caído em tamanho esquecimento. De onde ela vinha? Qual trajeto seguiu?”
Em busca de respostas, Mazé vasculhou arquivos e conheceu figuras próximas a D’Apparecida — entre elas, Mara Guimarães, amiga e assessora de imprensa, e Emie Fernandez, empregada que a acompanhara no fim da vida.
Sua investigação resultaria no livro Maria D’Apparecida, Negroluminosa Voz, lançado pela editora Alameda em 2020.
“Meu olhar não é o de um especialista em música”, explica. “Sou apenas uma autora que se interessa pelo viés humano das coisas. Eu queria desvendar a existência dessa mulher, seus sentimentos no exílio. Só que ela nunca gostou de falar sobre si mesma e não está mais aqui para me dar entrevistas.”
Um ano depois, anseios semelhantes inspirariam Dione na feitura de Maria D’Apparecida, Luz Negra. Originalmente concebido como espetáculo presencial, o projeto veio a público no auge da pandemia de covid-19, em forma de minissérie online. A própria dramaturga interpreta D’Apparecida.
“A reação dos espectadores é sempre paradoxal, uma mistura de choque, orgulho e tristeza”, diz.
“Encaramos esse trabalho como uma grande homenagem a ela, e um primeiro esforço para se contar, através das artes, a sua história”
Em maio de 2022, a empreitada ganhou um novo desdobramento: a publicação, na França, de Ópera Negra, biografia em quadrinhos realizada pela artista plástica Clara Chotil — filha de Mazé.
O livro acaba de ser lançado no mercado brasileiro pela editora Veneta.
“Me juntei à minha mãe na tentativa de dar uma nova cor a essa história”, diz Clara.
“Foi um processo demorado, pois eram imensos os riscos de se produzir uma HQ ruim. A vida de Maria D’Apparecida é cheia de ingredientes melodramáticos, e há uma grande lacuna naquilo que sabemos sobre ela. Ao mesmo tempo, sua vivência diz respeito a emoções que todo brasileiro experimenta na França.”
‘Acho que todo brasileiro tem vocação’
Maria D’Apparecida nasceu no dia 17 de janeiro de 1926. Nove meses antes, sua mãe, empregada doméstica, trabalhara para uma família rica em São Paulo.
Ao ser engravidada pelo filho do chefe, foi imediatamente demitida. Quando deu à luz, prestava serviços para um casal católico na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro.
A cantora nunca conheceu o pai. Aos oito anos perdeu a mãe, vítima de tuberculose, e daquele momento em diante seria criada pelos patrões.
“Ela se beneficiou de tudo que essa família pôde dar”, explica Mazé.
“Teve aulas de piano e balé, frequentou bons colégios, aprendeu línguas, jogou tênis. Tudo que as irmãs de criação tiveram, ela teve também.”
No início da vida adulta, dividiu-se entre o magistério e a locução. Durante o dia, alfabetizava crianças em escolas primárias; à noite, narrava histórias infantis em emissoras como Globo, Eldorado, Roquette Pinto e Rádio Nacional.
Foi então que se inscreveu num baile, o Rainha das Mulatas – segundo jornais, o “primeiro concurso de beleza colored” da capital fluminense.
O evento, promovido pelo ativista Abdias Nascimento e sua companhia, o Teatro Experimental do Negro, ocorreu em setembro de 1947.
“Para homenagear a flor da mistura de raças que se processa em nossa terra, compareceram cerca de 5 mil pessoas”, anunciou a imprensa.
“Gente de todas as classes sociais se confraternizou naquela autêntica noite de democracia étnica.”
D’Apparecida foi premiada com o primeiro lugar. Textos da época se referiam a ela como dona de uma “carinha brejeira” e “curvas capazes de entontecer qualquer mortal”.
João de Barros e Antônio Almeida se inspiraram na sua figura para compor uma marchinha, A Mulata é a Tal, grande sucesso do carnaval de 1948. Todavia, a jovem carioca não estava satisfeita com os rumos da própria vida.
“Descobri que era péssima professora”, relataria numa entrevista ao Pasquim.
“Então começaram a dizer, ‘vamos botar plumas aqui, mostrar as pernas, fazer isso e aquilo’. Fiquei tentada, mas não tive coragem.”
Entretanto, gostava de cantar: “Acho que todo brasileiro tem vocação. Você vê, chofer de táxi, empregada doméstica, todos cantam. Só que eu, mulata pernóstica, queria fazer ópera.”
No final de 1949, formou-se em canto lírico pelo Conservatório Brasileiro de Música. Sua instrutora, Graziela de Salerno, apresentava-se regularmente no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Ali, D’Apparecida assistiu às apresentações de duas das maiores sopranos da história — a italiana Renata Tebaldi e a greco-americana Maria Callas.
Encantada, desejou se apresentar naquele palco, mas não foi aceita, por ser negra.
“Mulheres como ela eram associadas ao samba”, observa Dione.
“Afinal, devemos caber na negritude que inventaram para a gente. Mas como quebrar tais expectativas sem entrar numa lógica de embotamento de nós mesmas? Para não desistir do próprio sonho, Maria criou estratégias de sobrevivência. Acho isso magnífico, e ao mesmo tempo terrível”, afirma.
“Precisamos tomar cuidado para não transformá-la numa heroína feliz.”
‘Eu daria uma de Stefan Zweig’
A ligação das mulheres negras com a ópera antecede o nascimento de Maria D’Apparecida em pelo menos 130 anos.
Já no final do século 18, a mineira Joaquina Lapinha atravessara diversas cidades portuguesas, apresentando-se com o rosto pintado de branco.
Em 1921, Zaíra de Oliveira ganhou uma viagem à Europa num concurso promovido pelo Instituto Nacional de Música, mas a cor de sua pele fez com que o júri lhe recusasse o prêmio.
Na década de 1950, Maura Moreira deparou-se com inúmeras adversidades em território brasileiro — e acabou se radicando na Alemanha, onde recebera uma bolsa de estudos.
Histórias semelhantes foram encontradas por Clara durante as pesquisas que realizou para sua HQ. A artista plástica notou que essas personalidades tinham algo em comum: cada uma delas era considerada a primeira mulher negra a despontar como cantora lírica no Brasil.
“Isso apenas ressalta a importância da trama que contamos”, declara.
“Me parece bastante árduo o trabalho de se abrir uma porta, de ser a primeira pessoa a atingir um objetivo. É algo que transcende o nosso talento, as nossas forças”, observa a artista plástica.
“Quando a gente esquece das portas que foram abertas por alguém, estamos condenando os sucessores a carregarem novamente esse fardo. Nesse sentido, acredito que Maria seja muito atual.”
A cantora sempre relembrava obstáculos: “Coragem nunca me faltou. Apresentei-me em alguns recitais por aqui, depois os amigos insistiram que eu fosse para a Europa”, declarou D’Apparecida.
Noutra entrevista, evocando o suicídio do célebre escritor austríaco, disse: “Estabeleci um tempo para vencer. Caso contrário, daria uma de Stefan Zweig.”
Em 1959, D’Apparecida se estabeleceu em Paris. Ali, conheceria Félix Labisse — cenógrafo, pintor surrealista e entusiasta da cultura afro-brasileira.
Casado e vinte anos mais velho, ele a empregou inicialmente como modelo; em seguida, tornaram-se amantes, com anuência de sua esposa.
A parceria deu origem a pelo menos quatorze quadros, nos quais D’Apparecida é retratada nua, em tons celestes, como filha de Iemanjá. A ideia partiu da própria cantora, que notara a dificuldade de Labisse em dar às tintas a cor de sua pele.
Ela teria dito: “Pinte-me em azul. Assim, todos verão que não sou branca.”
Junto ao artista, D’Apparecida conviveu com alguns dos principais nomes da cultura europeia no século 20. Labisse era próximo a pintores como Salvador Dalí e René Magritte; a cineastas como Federico Fellini e Alain Resnais; a escritores como Jacques Prévert e Raymond Queneau.
“Imagine você, um jantar entre essas pessoas”, reflete Dione. “Por outro lado, quem era Maria naquela mesa? Labisse a colocou numa posição de endeusamento, mas também de exotismo.”
Como homem branco e europeu, talvez não tivesse condições de acessar profundamente o que se passava na psique dela, avalia a dramaturga.
“De qualquer maneira, acredito que Maria tenha encontrado no surrealismo uma fuga dos padrões, um escape desse mundinho pequeno, todo um novo horizonte de formas líricas, oníricas, expandidas”, considera.
‘Ópera, pra mim, é festa’
D’Apparecida definia a si mesma nos seguintes termos: “Sou uma operária da música. Se no palco dou o melhor de mim, fora dele sou uma pessoa como outra qualquer. Ando de botas e calça comprida.”
Em 1960, apresentou-se pela primeira vez na televisão. Um ano depois, promoveria um recital de temas folclóricos no Teatro do Odéon, em Paris.
O programa era formado por obras de quatro compositores brasileiros: Waldemar Henrique, Hekel Tavares, Ernani Braga e Heitor Villa-Lobos.
“Música linda, da qual ninguém toma conhecimento”, diria a cantora.
“Aqui só queremos cantar Brahms, Schumann, Schubert. A princípio, achavam loucura eu incluir no repertório outros compositores. De minha parte, dou tanta importância à música lírica brasileira quanto à ópera.”
No dia 16 de agosto de 1961, o dramaturgo Guilherme Figueiredo registrou impressões sobre o espetáculo: “Como se comportariam os franceses diante de obras que, afinal, não possuem grande coisa do que se espera que seja a música popular brasileira, isto é, alguma coisa meio americana e meio cubana?”, questiona.
“Como receberiam uma cantora erudita que, embora de beleza tipicamente nacional, não oferece à plateia estrangeira os requebros que ela obrigatoriamente espera de uma cantora brasileira? Maria D’Apparecida venceu a prova. […] O triunfo estava ali, na sala, na acolhida dos críticos, na imediata repercussão manifestada por convites e contratos.”
D’Apparecida logo se tornaria a primeira brasileira a ingressar no corpo artístico da Ópera de Paris. Quando o jornalista Hélio Oliveira, do Diário Carioca, perguntou como chegara até lá, respondeu: “Trabalhando como uma negra.”
Em diálogos com a imprensa, a cantora defendia abertamente a modernização de sua arte: “Com a televisão e com o cinema, esse negócio de ópera tem que ser um troço assim muito pra frente, entendeu? A gente tem que fazer um circo. A gente tem que alegrar, tirar a poeira. Fazer um negócio assim, meio comédia musical, ligeiro, um pouquinho sapeca. Ópera, pra mim, é festa.”
Num sábado, 31 de julho de 1965, às 8h20, Maria D’Apparecida desembarcou no Aeroporto Internacional do Galeão.
Naquela manhã, a mezzo-soprano retornava ao Brasil para as comemorações oficiais do quarto centenário do Rio de Janeiro.
O Theatro Municipal, que rejeitara a cantora negra, fora o palco escolhido para a temporada lírica da festividade.
Mas agora, D’Apparecida vinha como integrante de uma trupe francesa, com a qual interpretaria a protagonista da ópera Carmen, de Bizet.
No dia 18 de agosto, antevéspera da primeira apresentação, os ingressos se esgotaram.
“Não consigo dormir”, admitia a artista. “Estou em permanente estado de tensão. Não é fácil estar longe de nossa terra, de nossa gente, mesmo quando se encontra o carinho que eu, graças a Deus, soube achar fora do Rio.”
Carmen era, desde o século 19, uma das obras mais populares de todos os tempos. Sua estreia ocorrera em março de 1875, na Ópera de Paris; três anos depois, chegaria à Academia de Música de Nova York, propagando-se por todo o continente americano.
No Brasil, as primeiras encenações foram realizadas pela companhia de um empresário francês, Maurice Grau, em junho de 1881, no Theatro Imperial do Rio de Janeiro.
Dali a cinco meses, o filósofo Friedrich Nietzsche a assistiria pela primeira vez, na cidade italiana de Gênova: “Quase chego a pensar que Carmen é a melhor ópera que existe”, escreveu na ocasião. “Enquanto nossa geração viver, ela estará em todos os repertórios europeus.”
Baseado no romance homônimo de Prosper Mérimée, o espetáculo narra os desdobramentos de um triângulo amoroso entre o soldado Don José, sua noiva Micaela e a cigana Carmen, que hipnotiza todos os homens a seu redor.
Por ela, o militar abandona o quartel e a antiga companheira, envolvendo-se em operações de contrabando e disputas físicas com um outro pretendente, o toureiro Escamillo. Tomado pelo ciúme, Don José esfaqueia a cigana até a morte, pouco se importando com a multidão que assiste ao crime.
Embora a ópera fosse ambientada na Espanha, versões posteriores introduziram seus personagens ao imaginário negro.
Carmen Jones, musical encenado na Broadway a partir de 1943, atualizou a trama para os EUA da Segunda Guerra, com um elenco inteiramente afro-americano.
Onze anos mais tarde, Otto Preminger dirigiu uma adaptação cinematográfica da peça, fazendo da protagonista Dorothy Dandridge a primeira negra a ser indicada ao Oscar de melhor atriz.
D’Apparecida, sob possível influência desses trabalhos, também afastava a personagem do prisma europeu.
“Carmen poderia ser carioca”, disse ao Pasquim. “Ela é assim, saliente, moleca de morro. Honesta nos princípios dela, mas uma barra pesada, né?”
As apresentações no Municipal, contudo, não ocorreram como previsto.
Quando a mezzo-soprano pegou uma gripe, as enfermeiras do teatro se recusaram a atendê-la. No camarim, foi hostilizada por colegas brasileiras.
Uma delas teria dito: “Por que vocês correm atrás dessa Maria D’Apparecida? Ela parece uma negrinha que compra pão para a patroa.”
Mais tarde, a artista comentaria o episódio: “Fico com pena. Na época atual, ter uma reação dessa natureza é o fim. O preconceito existe. Negro, judeu, pederasta, somos marginais.”
Semanas depois, a cantora apresentou o mesmo espetáculo na capital francesa.
Lá, a recepção foi diferente: “D’Apparecida é, sem dúvida, a Carmen mais completa que já conhecemos”, anunciou o jornal Le Parisien.
“Sua voz tem os graves do violoncelo e os agudos de um metal brilhante, sem rachaduras. Ela vive do começo ao fim essa aventura, canalha e tenra, alegre e melancólica, dramática e exuberante. Uma descoberta sensacional.”
‘Em meu país, uma negra só pode ser pedante’
Maria D’Apparecida vinha demonstrando um crescente interesse pelo tema da negritude. Em 1964, atravessara a África, observando a luta dos movimentos anticoloniais que eclodiam no continente.
Ao apresentar-se em Berlim, no segundo semestre daquele ano, fora assistida pelo pastor Martin Luther King. Em 21 de março de 1968, participaria de uma manifestação antirracista no anfiteatro da Universidade Sorbonne, em Paris.
A politização da cantora atingiu o ápice em dezembro de 1974, por meio de um acidente quase fatal: o táxi que a transportava bateu noutro veículo, arremessando seu corpo em direção ao vidro.
D’Apparecida, com o rosto disforme, a voz prejudicada e sob o risco da cegueira, enfrentaria três anos de convalescença e cirurgias.
Nesse ínterim, leu o romance Negras Raízes, best-seller de Alex Haley sobre as heranças da escravidão nos EUA.
“Ela já tinha pegado todo o rebote do movimento pelos direitos civis”, afirma Dione.
“E a partir dessa leitura, foi refletindo sobre a própria história, travando um contato muito profundo consigo mesma, se entendendo definitivamente como mulher negra. Foi uma espécie de motor para que ela reinventasse a própria vida,”
Em parte, o novo fôlego seria canalizado no misticismo: “Eu, que havia perdido um pouco a fé, fiquei de tal maneira vulnerável que senti necessidade de entender as outras religiões”, declarou a mezzo-soprano.
“O simples ato de acordar é um milagre. Que o Deus de cada um seja Cristo, Buda ou Maomé, não faz diferença alguma. O importante é agradecer.”
Na vida pública, a transformação mais evidente se deu pelo repertório.
A partir de 1977, D’Apparecida migraria do canto lírico para a MPB — lançando, em meados daquele ano, o primeiro álbum dessa nova fase, na companhia do violonista Baden Powell.
“Arrisquei meu nome na ópera porque quis provar a mim mesma que também podia cantar música popula”, disse. “Sempre dou algumas explicações ao público sobre a letra, dizendo quem é o compositor, para que não fiquem achando que é tudo igual, sobre pássaros, mar e mulher.”
No disco seguinte, Construction, a intérprete gravaria Chico Buarque, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Tal guinada marcava um esforço de reconciliação com as próprias origens — D’Apparecida nunca solicitou a nacionalidade francesa, e morreu como cidadã brasileira.
“Esse sentimento de inadequação, de não pertencimento, é algo que a define muito”, observa Clara.
“Ela estava no meio do caminho, nem aqui e nem lá, na fronteira do erudito com o popular, mas tinha uma postura leve com relação a isso. Ela vai cantar jazz, choro, samba e bossa nova, sempre orgulhosa da própria versatilidade”, observa.
“Ao mesmo tempo, será tachada de antipática, pois sua figura não cabia no estereótipo de mulher grata e servil.”
Em 1978, D’Apparecida analisou essa questão.
“Em meu país, uma negra que canta ópera só pode ser pedante, se ela não for um prodígio. O sucesso me fez esquecer essa evidência, e a pequena morte que sofri fez-me reivindicar o direito à normalidade.”
Cada vez menos conhecida no Brasil, a artista se mostrava impaciente com os rumos da terra natal: sua última declaração pública aos patrícios foi uma carta aberta ao presidente Fernando Collor de Mello, em 1991.
“Não tenho capacidade emocional, física, nem dinheiro […] para levar uma vida decente no nosso país”, escreveu na ocasião.
“Há muito tempo escuto a mesma ladainha: isto aqui está horrível. Agora, parece que piorou. […] Suas gracinhas já chegaram lá por Paris, e já não tenho mais cara para defender nosso país. Mas, como diz a canção, a gente vai levando… e eu continuarei sempre tentando segurar as pontas.”
‘Onde ela chega, nós todos chegamos com ela’
Segundo testemunhas, a cantora almejava publicar uma autobiografia.
“Ela chegou a anunciar o lançamento na imprensa, mas desistiu logo em seguida, achando que o projeto não tinha relevância alguma”, afirma Mazé.
“Me parece difícil saber o quanto isso tem de verdade, mas tudo indica que ela gostaria de ser perpetuada.”
Clara, por sua vez, imagina que D’Apparecida tenha romantizado a própria história.
“Sinto que ela foi uma pessoa extremamente misteriosa”, observa a quadrinista.
“Às vezes, é como se fosse personagem de si mesma, narrando experiências verídicas em ritmo ficcional, com alguns detalhes imprecisos e meio contraditórios. Se ela esboçou uma autobiografia no momento em que saía da vida pública, o texto provavelmente retratava a Maria que ela desejava mostrar, não a mulher fragilizada que de fato era.”
A existência dos manuscritos é incerta, mas acredita-se que façam parte do espólio da cantora.
No fim da vida, D’Apparecida vendera seu apartamento sob o sistema viager, uma modalidade contratual bastante difundida na França — o cliente paga mensalidades até que o morador venha a óbito, e então se apossa do imóvel.
Com a morte da brasileira, o novo proprietário tornou-se responsável por tudo que havia ali dentro — incluindo fotos, correspondências e trabalhos originais de Félix Labisse. Desde então, os objetos permanecem num depósito self storage.
Junto a outros admiradores da mezzo-soprano, a jornalista Mazé Torquato Chotil integra uma associação voltada ao resgate de seu patrimônio cultural — a Les Amis de Maria D’Apparecida (Os Amigos de Maria D’Apparecida).
Antes que o grupo se oficializasse, membros já haviam se mobilizado para dar à cantora um túmulo: assim, no dia 8 de setembro de 2017, o corpo de Maria D’Apparecida foi retirado do IML e enterrado no Cemitério de Bagneux, ao sul de Paris. Poucas pessoas compareceram à cerimônia.
Agora, a entidade move um processo judicial para recuperar os pertences da artista. Em setembro deste ano, seus representantes quitaram uma dívida de 36 mil euros (R$ 190 mil), acumulada no self storage pelo comprador do apartamento — a empresa, porém, não devolveu nenhum dos objetos que armazena.
Em caso de vitória nos tribunais, o acervo será digitalizado e entregue aos arquivos públicos brasileiros, junto a documentos já reunidos pelo grupo.
Segundo Mazé, outras ideias também estão em curso: batizar salas de concerto com o nome Maria D’Apparecida; instalar uma placa em sua homenagem no edifício em que morava, próximo ao Arco do Triunfo; realizar celebrações públicas em seus aniversários de nascimento e morte.
“É assim que as memórias se perpetuam”, diz a jornalista.
“Os grandes nomes da história são lembrados porque estão nos livros, museus, eventos, logradouros. Maria D’Apparecida precisa ser reapresentada à sociedade, e nossa associação surgiu para manter vivo o seu legado.”
No futuro, semelhante iniciativa pode reverter um quadro que Dione classifica como grave: “Estamos diante de um apagamento construído”, afirma.
“É injustificável que essa mulher não seja citada nos conservatórios do Brasil. Ester Freire, maestrina negra de experiência internacional que me deu preparação para o canto, nunca tinha ouvido falar em Maria D’Apparecida até trabalhar em nossa minissérie. Isso diz muito”, considera a dramaturga.
Mas como explicar o semi-anonimato da mezzo-soprano no exterior?
“Maria nunca ocupou o lugar que os franceses esperavam dela”, responde Clara.
“Por ser negra e gravar compositores brasileiros, foi catalogada como mais uma cantora de world music. Esse é um rótulo para tudo que o público considera exótico ou pitoresco, e acredito que tenha contribuído para seu esquecimento aqui em Paris“, avalia a artista plástica.
Um texto de Jorge Amado, reproduzido pela quadrinista nas últimas páginas de seu livro, talvez ilumine a discussão.
“Maria D’Apparecida conduz nossa verdade através da Europa. Onde ela chega, nós todos chegamos com ela”, escreveu o autor baiano.
“Seu nome de cantora é harmonia e mistério, rio e floresta, sombra e luz. Uma embaixatriz do Brasil junto a todos que amam a música, o canto e a poesia nos quatro cantos do mundo. Quem se aproxima dela, apaixona-se imediatamente. Quem a ouve cantar, não esquece jamais. Como esquecer Maria D’Apparecida? Impossível!”
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