Qual é a relação entre a anta, a paca e os outros animais terrestres amazônicos e a quantidade de oxigênio transportado no sangue das crianças que vivem em zonas remotas da floresta tropical? O maior estudo já feito no mundo sobre o consumo de carne de animais selvagens e a ocorrência de casos de anemia em crianças de 6 meses a 5 anos de idade indica que a carne de caça é um item fundamental na alimentação de brasileiros na primeira infância que vivem nas zonas rurais na Amazônia.
Conduzido por pesquisadores da britânica Lancaster University, da Universidade de São Paulo (USP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade do Pará, o estudo, já revisado, e recém-publicado pela Scientific Reports (do grupo Nature) instiga um paradoxo: o avanço do desmatamento na floresta amazônica, impulsionado pela criação de áreas de pastagem para bois, tende a reduzir a oferta de carne de caça para indígenas, ribeirinhos e comunidades tradicionais amazônicas, grupos socialmente vulneráveis.
Enquanto o pasto avança, no entanto, a possibilidade da carne bovina chegar ao prato dessa população segue sendo remota. Com menos carne disponível, as crianças da região ficam sujeitas à anemia.
“Vale a pena deixar claro que as pessoas na zona rural na Amazônia praticamente nunca consomem carne bovina. Em média, essas famílias comem bife uma vez a cada dois meses. Portanto, a carne bovina não está apoiando a segurança alimentar e nutricional dessas crianças”, afirma o cientista social Luke Parry, da Lancaster University.
Embora o trabalho de Parry e seus colegas não se debruce sobre os efeitos do desmatamento na eventual redução da oferta de carne de caça e de proteína animal na alimentação dessas populações tradicionais em geral, outras pesquisas já indicaram esses efeitos. A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, já apontou a anemia como um grave problema entre os povos indígenas do Brasil, com prevalência superior a de 40%.
O Atlas da Carne de 2021, elaborado pela Fundação alemã Heinrich Böll, que se dedica ao rastreio das causas ecológicas, indica que 63% das áreas desmatadas na Amazônia são convertidas em pasto para gado.
Mas a carne produzida ali não é, via de regra, consumida localmente. Estimativas apontam que algo entre 70% e 80% da produção bovina amazônica abasteça o Sudeste do país. Entre 10% e 15% se destinam a exportação. O restante fica na área da Amazônia Legal.
Entre os motivos para que a presença de um filé de boi seja tão raro na mesa de uma família ribeirinha socialmente vulnerável estão não só o preço da carne, alto para a renda familiar média nessas áreas, mas também a falta de energia elétrica e de qualquer condição de refrigerar e estocar o alimento, altamente perecível. O consumo de frango também é incomum.
Por outro lado, enquanto o Brasil bate recordes de desmatamento – com a destruição de mais de 13 mil km2 só no ano passado (maior perda desde 2006) – uma série de estudos já mostrou como a fauna é duramente afetada pela devastação de seu habitat.
Não só muitos animais morrem no momento da queimada ou da derrubada da vegetação, mas também predadores perdem suas melhores fontes de alimento, espécies deixam de encontrar locais de acasalamento e os animais ficam mais expostos e vulneráveis, o que, com o passar do tempo, provoca uma redução significativa das espécimes pra caça.
Um estudo feito por pesquisadores das Univerisades do Arizona, Flórida e Perdue, entre outras, e publicado em 2021, mostrou que as queimadas na Floresta Amazônica nas últimas duas décadas afetaram a população de 95% de todas as espécies da fauna local e até 85% das espécies listadas como ameaçadas de extinção na região.
“Na Amazônia, a população relata isso. Quando há uma degradação do ambiente, animais cuja carne é muito valorizada, como a anta ou a queixada, costumam sumir da região bem rápido. Outras espécies, como a paca, parecem ser mais resilientes à devastação ou à caça predatória”, afirma a pesquisadora Patrícia Carignano Torres, da USP, uma das autoras do estudo, que ressalta no entanto que o trabalho não avaliou a relação entre o desmatamento, a redução da caça e o aumento da anemia, apenas radiografou a importância dessa fonte de proteína para a parcela mais vulnerável das crianças ribeirinhas.
Eventos extremos, como fortes secas ou cheias atípicas, que têm atingido a região amazônica nos últimos anos, contribuem ainda mais para o desequilíbrio ambiental nas áreas já degradadas por ação humana.
“Há boas razões para pensar que as mudanças climáticas e o desmatamento da floresta aumentam os riscos para as crianças que hoje já enfrentam insegurança alimentar e desnutrição”, diz Parry.
De acordo com uma projeção feita pelos pesquisadores, uma perda significativa na oferta de carne de caça disponível na região hoje levaria o índice de anemia na primeira infância ali a aumentar em 10%. Isso significa que, apenas no Estado do Amazonas, até 3,7 mil crianças da zona rural passariam a sofrer de anemia.
Na Amazônia rural, seis em cada dez crianças têm anemia. No Brasil, uma em cada dez
Os pesquisadores visitaram 1.100 domicílios, escolhidos de modo aleatório, em 4 municípios do Amazonas, o mais distante deles a mais de 2 mil quilômetros da capital Manaus. No total, os pesquisadores estiveram em 58 vilarejos amazônicos, todos acessíveis apenas por barco.
Para entender o papel da carne de caça na saúde das pessoas, eles cruzaram os hábitos alimentares da população local com a contagem da proteína hemoglobina presente no sangue de 610 crianças – o indicador ideal para diagnosticar a anemia.
Bastava uma gotinha de sangue, retirada do dedo da mão dos pequenos na hora da pesquisa, para verificar em minutos se a criança estava ou não anêmica. Ainda assim, para boa parte da população local, o exame – e o resultado – foi uma grande novidade, já que o atendimento à saúde na região é precário.
Os pesquisadores descobriram que nas cidades amazônicas, onde o consumo médio de carne de caça não chega a duas vezes por mês, parece haver pouco impacto dessa fonte de proteína na saúde na primeira infância. Já nas zonas rurais e remotas, onde o consumo de carne de caça médio por família varia entre 4 e 8 vezes por mês, pacas, antas, bugios, jabutis e queixadas são indispensáveis no crescimento e desenvolvimento das crianças. O consumo de peixes, abundante nos dois grupos, não demonstrou efeito sobre a prevalência da doença sanguínea nas crianças.
A anemia é uma doença que surge pela falta de ferro no organismo e se caracteriza pela baixa quantidade de hemoglobina no sangue. A hemoglobina, que dá ao sangue sua tonalidade vermelha característica, é a responsável por levar oxigênio para todas as partes do corpo. Se o sangue de uma criança não consegue abastecer o organismo com a quantidade necessária de oxigênio, seus órgãos e músculos terão dificuldades de se desenvolver de modo saudável. É como se faltasse ar para que as células possam respirar e trabalhar – e até por isso alguns dos sintomas típicos dessa doença são o cansaço, a fraqueza e a palidez. A prevenção da anemia é feita por meio de uma alimentação rica em ferro (carnes vermelhas, vegetais de cor escura, ovos, leguminosas).
“A anemia, especialmente até os 5 anos de idade, costuma acarretar em déficit no desenvolvimento físico e cognitivo dessas pessoas, que vai se traduzir numa dificuldade de aprendizagem na idade escolar e terá efeitos até a vida adulta, na qualidade do trabalho que aquela pessoa poderá desempenhar e, por isso mesmo, nos empregos que vai obter. Estudos no mundo todo têm apontado para o papel da anemia no ciclo da pobreza: a criança, anêmica por estar em família vulnerável, se torna um adulto de baixa remuneração que tende a repetir o processo de constituir uma família vulnerável, com filhos com anemia e assim por diante”, explica Torres.
Nesse sentido, embora a carne de caça represente alguma segurança nutricional para essas crianças, os pesquisadores apontam que ela não é uma “bala de prata” para salvar a infância da Amazônia. E provam isso com dados: segundo o Ministério da Saúde, em 2020, a taxa de anemia medida nacionalmente em crianças entre 6 meses e 5 anos de idade foi de 10%. Ou seja, uma em cada dez crianças brasileiras na primeira infância vive com a doença. Já nas áreas rurais amazônicas visitadas por Torres, Parry e seus colegas, o índice salta para 60%: a cada dez crianças de até 5 anos nessas localidades, seis estavam anêmicas.
“Sequer sabemos hoje quais micronutrientes esses animais selvagens possuem, nunca houve estudos disso. Essas crianças vivem com privação de uma série de vitaminas e minerais. E sabemos que se a carne de caça segura um pouco esses índices de anemia, ela não resolve por completo o problema, como vemos pela quantidade de crianças anêmicas”, afirma Torres.
Embora o tratamento da anemia seja relativamente simples – a ingestão regular de cápsulas de ferro ou de farinha enriquecida com o metal, por exemplo -, é difícil o acesso dessa população a profissionais de saúde que possam orientar os pais ou responsáveis e garantir a regularidade da distribuição gratuita do suplemento.
Durante o estudo, com frequência os pesquisadores foram interpelados a fazer exames em pessoas na comunidade que sequer faziam parte da amostra pesquisada, mas viam na presença dos profissionais uma rara oportunidade de obter informações sua condição de saúde.
A Amazônia tem 1,1 médico para cada mil habitantes, enquanto no Sudeste do Brasil há 2,8 médicos para cada mil residentes. E dentro da própria Amazônia há desigualdade: em Manaus, há 2,8 médicos para cada mil habitantes em comparação com média de 0,2 médico nos municípios amazonenses com até 50 mil habitantes. “Os cuidados de saúde das crianças são particularmente irregulares. O Estado do Amazonas cobre 1,6 milhão de km2 e tem 3,8 milhões de pessoas, mas apenas 344 pediatras, predominantemente localizados na capital do estado.
“A negligência a que as populações ribeirinhas têm sido relegadas faz com que o índice de desenvolvimento humano dessas áreas seja menos parecido com o do Brasil e mais similar ao da Zâmbia”, diz Luke Parry.
Caça e conservação
Um dos aspectos mais controversos da importância da carne de animais silvestres para a saúde de crianças em famílias vulneráveis e em áreas de floresta é que a prática da caça pode também se mostrar destruidora do ecossistema de que essas populações dependem para viver.
Esse é um problema enfrentado não só na Amazônia, mas também na África. Antes do artigo de Torres e Parry, uma pesquisa de menor monta em Madagascar já havia indicado que menores de 12 anos em uma das vilas da ilha dependem da carne de caça para afastar a anemia. O mesmo parece ser verdade para países como o Congo, Nigéria e Equador, embora faltem pesquisas definitivas.
Ao mesmo tempo, cientistas têm descrito o que chamam de “bushmeat crisis” ou “crise da carne de caça”, um processo de predação massiva de espécies nos países da África Ocidental e na bacia do Rio Congo, que representa hoje a maior ameaça de extinção para os grandes primatas, outras espécies de macacos, elefantes e antílopes.
Já no Brasil, é crime o ato de “matar, perseguir, caçar ou apanhar” espécies da fauna silvestre – nativas ou migratórias – estejam elas em extinção ou não. Estão vedadas a ação de caçadores comerciais, profissionais ou esportivos, embora a fiscalização seja frequentemente insuficiente.
Quem for apanhado, mesmo que com um único animal capturado, está sujeito à pena de prisão de 6 meses a 1 ano, e ao pagamento de uma multa. Como exceções à regra estão os caçadores que obtêm licenças especiais junto aos órgãos ambientais ou autorizações temporárias de caça de uma determinada espécie para controle de população – como no caso recente dos javalis/ javaporcos em São Paulo.
A lei diz ainda que não é crime abater um animal se o caçador estiver “em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família”. Mas o texto é criticado por ambientalistas e sociólogos porque não define parâmetros para proteger a caça científica – quando os animais são coletados para estudo – e a de subsistência. “A lei brasileira é confusa e a caça de subsistência fica em um limbo. Na prática cabe ao agente, na hora da fiscalização, definir o que é fome e o que é necessidade dessas famílias e se elas estariam cometendo crimes ou não”, nota Torres.
Segundo Parry, que estuda a região amazônica há anos, as populações que mais dependem da caça para seu bem-estar – as em zonas rurais e vulneráveis – são também aquelas com menos probabilidade de fazer uma caça predatória, massiva e destrutiva, apesar da falta generalizada de instruções de manejo.
“Em muitas áreas, a caça é bastante sustentável, principalmente em comunidades mais remotas, quando temos poucas famílias e muita floresta ao redor. Quanto mais perto das cidades, maiores os riscos de caça excessiva, porque há uma maior densidade populacional e uma área florestal já mais em risco”, diz o cientista social britânico.
Os dados sugerem que não basta a conservação ambiental para salvar espécies de extinção e crianças da anemia. “A Amazônia precisa de um desenvolvimento econômico sustentável, que mantenha a floresta em pé ao mesmo tempo em que gere mais renda para que a população local tenha acesso a melhores alimentação e práticas de saúde”, resume Torres.
Enquanto isso não acontece, no entanto, ela é categórica em dizer que o Estado brasileiro não deve criminalizar quem caça para comer.
“Nossos resultados deixam claro que não se deve proibir o acesso da população à carne de caça, não só por questões culturais e sociais, mas porque parte do bem-estar e desenvolvimento dessas crianças dependem disso”, diz Torres.
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