Na minha coluna de sexta, na Folha, tratei do despropósito em curso no PSDB e evoquei a fala de Riobaldo — de “Grande Sertão, Veredas”, de Guimarães Rosa — sobre o Deus e o diabo:
“Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver –a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo.”
Uma leitura possível: o demônio não é o terror; o demônio é o nada do sem-fim.
Assim ficou o PSDB e assim tem sido já faz um bom tempo. Passou os quatro anos do governo Bolsonaro no Congresso sendo nada, na periferia do adesismo. E não conseguiu transformar em ativo eleitoral o trabalho invulgar que fazia em São Paulo um de seus quadros.
A vitória, como se costuma dizer, tem muitos padrinhos e donos. A derrota, a derrocada, costuma ser órfã. Ninguém quer saber. Costuma-se apontar o dedo para o lado.
João Doria, que desistiu, nesta segunda, da postulação à Presidência, cometeu muitos erros, é fato. Foi esmagado pela direção partidária e, claro!, pelos índices nas pesquisas. A questão é saber se esse resultado foi mesmo fabricado pelo perfil dito “pouco agregador” do agora ex-postulante ou se todos colhem os frutos, como acredito, de uma leitura equivocada do quadro político e do desastre provocado por Jair Bolsonaro na institucionalidade.
DIREITAS COLHIDAS POR LULA
Recém-eleito prefeito de São Paulo em 2016, Doria se tornou um postulante à Presidência da República. Se não por sua voz, era pela de correligionários. E ali já começou a trincar a relação com Alckmin. Acabou concorrendo ao governo de São Paulo, bolsonarizou a campanha, tragado pelo aluvião de reacionarismo que tomou conta do país, e se deu a fratura, então, com o agora vice na chapa de Lula, que havia patrocinado a sua ascensão. Haverá quem diga ao fim do parágrafo: “Colheu o que plantou! Quem mandou?” Mais: de modo imprudente, tentou se livrar do deputado Aécio Neves (PSDB-MG), pouco atento, parece, à influência que aquele tinha na legenda.
Elencadas, de modo muito suscinto, as culpas de Doria, resta saber se o partido tinha algo robusto a oferecer como alternativa, dado o quadro que se desenhou. Sim, é verdade! Em março do ano passado, o chão da política tremeu quando Edson Fachin, finalmente, fez a coisa certa e anulou as condenações de Lula, o que foi referendado pela maioria do pleno. O ex-presidente não estava sendo “inocentado”: era maior do que isso. Passava à condição de inocente, a exemplo de qualquer um que não é réu em processo que nem existe…
Recuperada a sua elegibilidade, reinstalava-se um polo competitivo à esquerda na eleição. Na verdade, note-se à margem, Lula liderava as pesquisas também em 2018 mesmo na cadeia — até ser impedido de disputar, quando, então, lançou Fernando Haddad, que passou para o segundo turno.
Implodia a arquitetura política criada pós-impeachment e pós-eleição de Bolsonaro. Até 2021, lideranças de centro-direita e direita que haviam apoiado Jair Bolsonaro e/ou a Lava Jato se preparavam, então, para faturar politicamente, o que é parte do jogo, com o desgaste do governo, seus desatinos, suas obsessões homicidas, o desastre na gestão do combate à pandemia etc. Quando Lula irrompe no cenário, deixou de valer o que cantavam as antigas musas.
O SURGIMENTO DO NEM-NEM
E, então, surgiu a tese estúpida que apelidei, precocemente, “nem-nem” — e ela estará na base da postulação de Simone Tebet (MDB), caso esta prospere, claro!, coisa de que não se pode ter certeza. Aliados circunstanciais do atual presidente — refiro-me à disputa de 2018 — propunham-se a tomar o seu lugar no condomínio da direita e julgaram, num erro histórico, que a esmagadora maioria dos brasileiros tinha do PT a ojeriza alimentada por setores do eleitorado situados na classe média e nas elites. Talvez devessem ter consultado os dados da PNAD de 2019: 70% dos brasileiros que trabalham ganhavam até dois salários mínimos! É uma das fortalezas de Lula.
O “nem-nem” era uma formulação condenada ao nada, ao demônio da desinteligência, ao sem-fim que “nem não se pode ver”. Criava-se o que classifiquei de “quimera da dupla negação”: nem Bolsonaro, que está aí, com sua base de fanáticos, com influência num círculo expandido que chega a um terço do eleitorado, nem Lula, ignorando que o ex-presidente é um tantinho mais — e que tantinho! — do que história contada pela Lava Jato, em suas práticas criminosas. Nota à parte: a tal Terceira Via segue sendo refém dessa loucura. Até Bolsonaro resolveu se distanciar da turma. Operou-se uma coisa estranha: essa gente “nem-nem” passou a falar a linguagem da antipolítica, que era a marca de Bolsonaro. Não por acaso, durante algum tempo, Sergio Moro era considerado “a novidade”.
MAS E DORIA?
Nesse tempo, Doria fez uma gestão competente em São Paulo, coisa de que, certamente a esquerda há de discordar, mas sabe, intimamente, que é fato. E pôs o poder e os recursos de São Paulo a serviço da vacina. Não dá para estimar o tamanho do desastre sem a sua atuação em favor da imunização coletiva.
Bolsonaro, no entanto, foi em parte bem-sucedido em demonizar seus esforços, logo associando o governador de São Paulo à luta que decidiu travar contra o Supremo. Revisei por esses dias parte do noticiário relativo aos embates mais duros sobre distanciamento social, uso de máscaras, compra de vacinas etc. O Doria que agora é descartado pelo PSDB fez, sim, a coisa certa durante todo o tempo. “Ah, mas nunca disfarçou que queria a Presidência…” Não mesmo. Mas o que há de errado nisso quando se o faz oferecendo vacinas? Ou tendo a clareza de instalar uma câmera no uniforme de PMs, o que fez despencar o número de mortos, também entre os policiais?
O PSDB, como partido, não tentou integrar a vanguarda da luta contra os desatinos de Bolsonaro. Se Doria passou a ser o governador disciplinado da Coronavac e do distanciamento social — desentendeu-se com parte do empresariado que o apoiava —, seu partido preferiu ficar distante do embate com o presidente da República. Poderia ter sido, caso se organizasse para tanto, um dos protagonistas da CPI da Covid. Em vez disso, nem era tão difícil colher em “off” muxoxos de tucanos contra o aliado que, afinal de contas, fazia a coisa certa, ainda que tenha cometido, internamente, na relação com seus pares, uma penca de erros.
E VEIO O RESTO
E veio o resto. O partido estabeleceu critérios para a definição do candidato à Presidência. Eduardo Leite tinha 10 anos quando Sergio Motta, figura lendária do PSDB, morto em 1998, conteve o apetite de um aliado mais afoito observando: “Política tem fila”. Na fila tucana, por seus feitos, é claro que Doria deveria estar à frente, mas não eram poucos os membros do partido que alimentaram as ambições de Leite.
Definiram-se as prévias, segundo critérios mais favoráveis ao então governador do Rio Grande do Sul. Doria venceu. Quando não se quer respeitar resultado, grite-se: “Fraude!” Aconteceu. O desafiante chegou a estar com um pé no PSD, mas recuou. Agora não sabe se volta a disputar o governo gaúcho, ao qual renunciou, ou se aceita a proposta do pedaço do partido, liderado por Aécio, que o quer candidato. No acerto de Bruno Araújo, presidente do PSDB, a legenda fecha com Simone Tebet.
É um desastre sem precedentes. Reitero: por mais erros que Doria tenha cometido nesses seis anos em que foi do céu ao inferno — de prefeito eleito no primeiro turno em 2016 a postulante estraçalhado pelas hienas, para lembrar um bicho que só ataca em bando —, é evidente que o PSDB está jogando no lixo um patrimônio que constituiu o maior desafio coletivo da história brasileira: enfrentar a Covid mesmo tendo, na contramão, um governo hostil, com teses que resultaram em homicídio em massa se seguidas.
ENCERRO
Parte do tucanato — algumas de suas figuras históricas — já percebeu que essa história de “nem-nem” é uma estupidez. Estamos, na verdade, diante de um “Sim” e de um “Não” absolutos, que se combinam. É o “Sim” absoluto à democracia e o “Não” absoluto à fascistização da política.
Todos os que contam terão a chance de se manifestar. Doria inclusive.
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