Após a apresentação do excelente trabalho Custo da insegurança jurídica, trazido pelo professor José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da FecomercioSP, durante evento realizado na sede da entidade, em conjunto com o Conselho Superior de Direito, que tenho a honra de presidir, fiz aos presentes algumas considerações, que compartilho com os amigos leitores.
A primeira foi sobre a filosofia do atual governo e a presente composição do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Temos, indiscutivelmente, por parte do governo do presidente Lula, uma certa resistência à economia de mercado e, ao mesmo tempo, uma crença, mais do que meramente ideológica, convicção conformada por visão pessoal e não pelas regras de mercado, de que a economia funciona melhor com as empresas estatais. Nestas ele tem colocado não especialistas, mas seus amigos, que pensam da mesma forma.
Vemos a campanha feita pelo governo no sentido de reestatização de determinadas empresas e, ao mesmo tempo, a forma como cargos de empresas estatais, principalmente a Petrobras, têm sido, novamente, loteados, como eram no passado. Sabemos perfeitamente que, quando a empresa não pertence aos donos, nem aos acionistas, ou a ninguém em particular, torna-se campo fértil para a corrupção.
Essa mentalidade também levou à indicação de ministros do Poder Judiciário. A realidade, hoje, no TST, é que nós temos 27 ministros, dos quais 14 estão nitidamente alinhados com a filosofia do presidente Lula, e 13 ministros favoráveis à economia de mercado, os quais atuaram para que a reforma trabalhista fosse concretizada, razão pela qual a resistência do TST a seguir a reforma obriga o Supremo Tribunal Federal (STF) a ser também uma espécie de revisor das decisões tomadas pelo TST.
Aquela observação com a qual o professor José Pastore iniciou, de que muitas vezes o juiz se coloca diante do problema entre decidir de acordo com a lei ou de acordo com o humanismo, é algo que tive a oportunidade de expor ao ministro Luís Roberto Barroso, em evento na FIESP. A função do Supremo e do Poder Judiciário é respeitar a lei, mesmo que ela não agrade.
Recordo-me de uma decisão do ministro José Néri da Silveira, em relação a um conflito de terras entre os estados do Acre e de Rondônia. Eu havia elaborado parecer favorável ao estado de Rondônia, e o relator, para decidir sobre aquele trecho de terra importante, que envolvia 30 mil habitantes, dos quais o Acre cuidava há muito tempo, transcreveu meu parecer em seu voto.
O ministro dizia o seguinte: “Eu gostaria de dar razão ao estado do Acre, ele sempre cuidou da polícia, etc., mas o que está no texto constitucional me obriga a decidir de acordo com a lei, não com a minha preferência”. Assim, ele garantiu as terras para Rondônia, em conformidade com o artigo 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Durante o evento na FIESP, o ministro Luís Roberto Barroso me disse mais ou menos o seguinte: “Professor, quando nos trazem um problema que o Congresso não solucionou, temos uma situação muito séria e precisamos resolvê-la. Às vezes, a solução não encontrada pelo Congresso obriga-nos a decidir como acharmos melhor”.
Apesar de nossa amizade, livros escritos em conjunto e respeito mútuo nos debates, expliquei ao ministro que a função de legislar é do Congresso e, se ele agir mal, caberá aos eleitores elegerem novos parlamentares, mas o papel do Poder Judiciário não é legislar. Por mais que uma decisão humanista possa parecer necessária, o juiz não pode decidir legislando.
Hoje, vemos o STF se auto-outorgar poderes, decidindo de forma diversa do Congresso, e, quando o Legislativo ou o Executivo não agem, o Supremo intervém, conforme a visão autoformada de seus ministros, o que, a meu ver, apesar da qualidade intelectual dos magistrados, não é o que dispõe a Carta da República.
Quem gosta de História, extremamente bem documentada no Antigo Testamento, percebe que o pior período de Israel foi quando governado por juízes. Se analisarmos aqueles quase três séculos, veremos o grito do povo e a sensação de que estavam sendo mal administrados, a ponto de irem ao profeta Samuel para pedir um rei. Eles queriam ser como outros países e não aguentavam mais os juízes. Apesar das considerações de Samuel de que os reis poderiam ser piores, os juízes foram afastados.
É que os juízes não têm contato com o povo. Na democracia, os eleitores escolhem seus representantes, enquanto os juízes, que passam por concursos, não têm essa relação direta com a população. Dou muito mais valor a um juiz de primeira instância, seja federal ou estadual, que passa por um concurso exaustivo, do que a magistrados que, por melhores que sejam, precisam fazer campanha de amizade e contar com excelente relacionamento com o presidente da República.
Existem aspectos poéticos, líricos e românticos na ideia do “notável saber jurídico”. Não é algo que se equilibra simplesmente com títulos de professor, doutor ou mestre, mas está muito além disso. A verdadeira relevância não é a titulação, mas ser “amigo do rei”. Um juiz de primeira instância sofreu muito para chegar lá, enquanto um ministro precisa apenas ter boas relações com o presidente.
Hoje, no Supremo Tribunal Federal, temos três ministros que vieram da magistratura e oito que não vieram. São profissionais competentes, mas amigos do presidente. Apesar de eu respeitar e admirar esses ministros, com alguns dos quais escrevi livros, essa mentalidade tomou conta do nosso Poder Judiciário, gerando a insegurança jurídica e as distorções que constatamos na excelente apresentação do professor José Pastore, que não serão facilmente reformadas.
Carl Schmitt, em seu livro Conceito do Político, dizia que as ciências e artes são conhecidas pelas oposições. Na moral, estudamos a oposição entre o bem e o mal; na estética, entre o belo e o feio; na economia, entre o útil e o inútil; e na política, entre o amigo e o inimigo. O que Schmitt disse sobre o conceito de política, é verdade.
No meu livreto Uma breve teoria do poder demonstro que aqueles que assumiram o poder, só podem ser dele afastados, porque não abrem mão do poder. É o caso do Maduro, atualmente.
Nas democracias, o eleitor tem esse poder, mas nas ditaduras, não. Quando um juiz assume o cargo, seja por concurso ou nomeação, ele sabe que permanecerá lá e no momento em que se auto-outorga poderes, é difícil removê-los.
O trabalho nas faculdades e escolas é crucial para que uma nova geração enfrente esse desafio. Aos 89 anos, essa luta não é mais minha, mas de vocês. Este é o grande drama do Brasil e a verdadeira batalha que enfrentamos. A essa altura, uma batalha que não será fácil. Há de termos, entretanto, uma democracia com harmonia e independência dos Poderes, cada um nos limites constitucionais que lhe foram concedidos.
Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
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