Hoje temos uma Constituição que, apesar de extremamente prolixa e repleta de disposições que não possuem densidade constitucional, talvez seja a Constituição que mais incorporou aspectos fundamentais, haja vista a valorização dos direitos individuais, coletivos, dos cidadãos, políticos, de cidadania, sociais, além da harmonia e independência entre os Poderes.
Quando foi convocada a Assembleia Constituinte, nós tínhamos um regime no qual o Poder Executivo era predominante e governava por decretos-leis − que não podiam sequer ser modificados no Congresso, o qual poderia aprovar ou rejeitar, mas não apresentar emendas −, e um Poder Judiciário sendo que não havia nenhuma possibilidade de qualquer instituição apresentar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade, já que o procurador-geral da República era o único que tinha legitimidade ativa para tanto.
Com isso, havia propostas de inconstitucionalidade de leis estaduais, mas jamais de leis federais, porque quem podia propor era o próprio advogado de quem fazia as leis, isto é, do presidente da República, que governava por decretos-leis.
Com o advento da Constituinte, participei de diversas audiências públicas, e constantemente mantive contatos com Bernardo Cabral e Ulisses Guimarães, respectivamente relator e presidente da Constituinte. O deputado Ulisses Guimarães assistiu palestra minha sobre o parlamentarismo, sendo que o projeto da Constituição foi parlamentarista até a Comissão de Sistematização. Procuraram, os constituintes, garantir os direitos individuais e, ao mesmo tempo, que os Poderes fossem harmônicos e independentes.
Colocaram, logo no artigo primeiro, que quem era soberano em uma democracia real era o povo. Quem poderia dizer o que é ou não democracia era o povo, por meio de seus representantes, eleitos por eleição, não indicados − houve um período em que senadores eram indicados pelo presidente da República −, e o artigo primeiro declara, através dos seus representantes, o povo é o soberano, é o que pode, efetivamente, definir a democracia no país.
Por essa razão, é que, no Título IV da Constituição, o primeiro Poder que aparece é o Legislativo, por uma única razão: é o único Poder dos três que tem a representação da totalidade da Nação, onde encontramos a situação e a oposição. A maior representação é, portanto, daqueles que elaboram as leis, manifestando a vontade do povo (artigo 44 a 69).
O segundo Poder, previsto nos artigos 76 a 91, é o Executivo, que representa a maioria do povo (salvo quando há segundo turno, caso em que muitos votam por exclusão, porque no primeiro turno tinham um candidato próprio).
O terceiro Poder não é representativo do povo nem por ele eleito, sendo, pois, um poder técnico, que representa a lei, já que as pessoas que o integram possuem conhecimento para garantir o Direito. O Poder Judiciário não seria nada se não tivesse duas instituições fundamentais: o Ministério Público e a Advocacia, que formam o tripé fundamental.
Por essa razão, é um poder técnico, que não elabora a lei, nem pode fazê-lo, segundo a Constituição, pois a ele cabe a garantia da lei e da Constituição, com a colaboração da Advocacia e do Ministério Público.
Assim, as três Instituições são importantes.
Recentemente, em conversa com o ex-presidente Michel Temer (que também foi professor de Direito Constitucional) falamos sobre a relevância do fato dele ter inserido na Constituição, como constituinte, o artigo 133, que prevê a inviolabilidade do advogado no exercício das suas funções.
Ora, esse equilíbrio dos três Poderes com funções exaustivamente definidas na Constituição é que justifica o artigo segundo. Se o primeiro diz que o povo é soberano, e manifesta-se, por intermédio dos seus Poderes representativos, Executivo e Legislativo, o poder técnico que abrange o Poder Judiciário (92 a 126), o Ministério Público (127 a 131) e a Advocacia (133 a 135), é um poder que tem que viver em harmonia e independência com os outros.
Isso foi o que os constituintes desejaram; tanto que para preservar essa independência e harmonia, atribuíram ao Legislativo, onde encontramos situação e oposição, o artigo 49, inciso XI, a seguinte disposição: zelar− a expressão é zelar − pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes. Trata-se, pois, do sistema de freios e contrapesos, que é típico do Direito americano.
O poder técnico (Poder Judiciário) só pode atuar como legislador negativo, vale dizer, pode declarar que uma lei é inconstitucional, mas não pode jamais legislar no lugar do Legislativo. É o que está no artigo 49, inciso XI, no sentido de que a quem cabe zelar pela sua competência é o próprio poder, não podendo delegá-la.
Creio, pois, que como juristas, temos que conhecer a espinha dorsal (harmonia e independência entre os Poderes) da Constituição, não obstante sua adiposidade.
Certa vez, em um debate na Folha de S.Paulo com o Celso Antônio Bandeira de Mello, Nelson Jobim e Bernardo Cabral, defendi essa posição e os três concordaram inteiramente comigo.
Mais do que isso, o relator da Constituição, Bernardo Cabral, que atualmente preside o Conselho de Notáveis da Federação do Comércio, dizia que era a posição dele também. Ele que foi eleito pela Constituinte para ser o relator, chegando a receber 2.500 artigos, propostas que teve de conciliar e que ele compactou em 245.
Por essa razão, digo o que está escrito na Constituição o que muitos, até mesmo na Suprema Corte, não perceberam ainda ou, se perceberam, não quiseram aceitar.
Os relatores, participantes, políticos e professores que acompanharam o processo constituinte são testemunhas de que durante três meses, os constituintes não discutiram nada, pois convocaram especialistas para, em audiências públicas, exporem a sua opinião sobre a Constituição.
Eu mesmo fui a duas audiências públicas e depois continuei a dar as minhas opiniões com Delfim Neto, Dornelles, Bernardo Cabral e Ulisses, cada vez que me mandavam um texto. Digo isso para mostrar a preocupação que os constituintes tiveram em ouvir especialistas, antes de escreverem o texto definitivo.
Por isso, é fundamental que todos percebam que, de rigor, o Texto Maior e o que nele está escrito é o estatuto que um povo escolhe para si, ou seja, para saber como vai organizar sua vida, sendo imprescindível dar-se importância à supremacia da Constituição.
Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
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