A ravina desce 30 metros a partir de uma cobertura de terra montanhosa até o solo desértico. Sua largura diminui de cerca de 30 metros para apenas um metro, serpenteando até entrar em um labirinto de cânions não mapeados. Ali, a rocha é entremeada de tons laranja, a cor de um pôr do sol perfeito.
O silêncio domina o ambiente. A temperatura chega a atingir 40 °C, e o cânion oferece abrigo contra o calor sufocante.
Green prossegue em sua descida, munido de um capacete, arreios, corda de escalar, argolas de rapel e mosquetões. O equipamento o ajuda a descer até o vale escondido, de onde há poucas saídas.
Green é um dos proprietários do serviço de guias profissionais Excursions of Escalante.
“Ninguém se interessou por este lugar por muito tempo”, explica ele. “Aqui foi dado o nome da última cordilheira da América, as montanhas Henry. Aqui estão os últimos rios a receberem nomes. Foi o último lugar da América a ser explorado, nos anos 1870. Todos evitavam passar por aqui porque era muito perigoso.”
Atualmente, o Monumento Nacional Grand Staircase-Escalante, no sul do Estado de Utah, é um dos lugares mais traiçoeiros e inacessíveis dos Estados Unidos.
O local tem formato de sanfona, com ondulações formadas pelos seus planaltos recortados, cumes, rochedos e escarpas que nunca foram totalmente conquistados ou compreendidos pelos americanos, nativos ou imigrantes.
O monumento é maior do que alguns Estados americanos, como Delaware e Rhode Island, por exemplo. E, principalmente para os amantes da cartografia, ele foi o último lugar a ser mapeado na parte continental dos Estados Unidos.
BBC: O terreno é acidentado neste canto do sul do Estado de Utah — Foto: LIGHTPHOTO/GETTY IMAGES – BBC
Green calcula que existam ainda hoje centenas de desfiladeiros rasgados na rocha lisa que não foram vistos por olhos humanos, que dirá explorados.
Ainda assim, ele ganha a vida examinando cerca de 30 dos locais mais acessíveis para entender melhor este canto selvagem do sul de Utah.
“Grand Staircase-Escalante faz os exploradores de cânions como eu acordarem de manhã”, ele conta.
Visto do espaço, o monumento nacional parece a escada de um gigante colossal, que leva do Planalto do Colorado até o Grand Canyon. E, visto de perto, é um labirinto antigo de paredes recortadas e mesas ameaçadoras.
Os números trazem outra revelação. O monumento cobre 756 mil hectares de terras públicas dos Estados Unidos e cinco biozonas, das planícies desérticas até a floresta de coníferas. E engloba os territórios históricos dos povos originários Anasazi e Fremont.
Reconhecido pela primeira vez pelo presidente Bill Clinton em 1996, o monumento nacional também é uma preocupação política permanente.
O ex-presidente Donald Trump decidiu permitir a exploração da região, reduzindo a extensão do monumento nacional pela metade. Mas o atual presidente Joe Biden reverteu a decisão em outubro de 2021, emitindo uma proclamação presidencial que modificou as fronteiras e restaurou a ordem de preservação do monumento.
O decreto original inclui os motivos da designação.
“Esta região alta, escarpada e remota, onde imensos planaltos e rochedos multicoloridos percorrem distâncias que desafiam a perspectiva humana, foi o último lugar da parte continental dos Estados Unidos a ser mapeado”, diz o documento.
“O monumento tem uma longa e dignificante história humana; é um lugar onde se pode observar como a natureza determina os esforços humanos no oeste americano, onde as distâncias e a aridez testaram nossos sonhos e nossa coragem.”
BBC: A estrada do cânion Cottonwood leva os viajantes para estreitos desfiladeiros, arcos de pedra naturais e cenários rochosos sem fim — Foto: BBC: DIANA ROBINSON PHOTOGRAPHY/GETTY IMAGES
Confirmando a credibilidade da declaração, relatos históricos do final dos anos 1880 dão conta de que os pioneiros começaram estabelecendo um caminho entre Escalante e o que hoje é Fortymile Spring, ambos em Utah. A ideia era formar um atalho até o rio San Juan, mas eles foram impedidos pelo terreno excessivamente acidentado.
E, segundo a proclamação, esta é uma prova de que nenhum outro lugar dos Estados Unidos foi mais difícil de ser alcançado.
O relato mais convincente é o do livro A History of Southern Utah and its National Parks (“Uma história do sul de Utah e seus parques nacionais”, em tradução livre), do zoólogo americano Angus M. Woodbury (1896-1964).
Um forte conjunto de batedores foi enviado para investigar e proteger as áreas mais acidentadas do planalto Kaiparowits, que hoje faz parte do Monumento Nacional Grand Staircase-Escalante. Mas eles voltaram frustrados por não terem tido sucesso.
“Foram enviados mensageiros para Salt Lake City em busca de assistência, que foi prestada na forma de financiamento legislativo para abrir um caminho”, segundo o relato.
Para a gerente do Monumento Nacional Grand Staircase-Escalante, Adé Nelson, a terra permanece sendo um enigma e um quebra-cabeça geográfico que, provavelmente, nunca será totalmente resolvido.
“Devido ao terreno irregular e acidentado, existem partes do monumento que são totalmente inalcançáveis e, provavelmente, nunca serão completamente mapeadas”, explica ela.
Atualmente, esses desfiladeiros são uma fronteira, em um sentido muito diferente da palavra. Os pesquisadores chamam o local de “Monumento da Ciência”.
A região se tornou um enorme laboratório ao ar livre. Os cientistas usam cada canto do monumento nacional para entender melhor o nosso meio ambiente, nossa história e o passado do planeta.
Conchas de ostras e outros moluscos do período cretáceo, em um ponto tão distante do oceano, são encontradas entre os detritos nos cumes das montanhas. Crocodilos petrificados e pegadas de Tyrannosaurus rex com seus três dedos esperam para ser descobertos.
O local é um museu de história natural em escala natural, repleto de ossos e relíquias.
BBC: O tom alaranjado dos desfiladeiros é a cor perfeita para o pôr do sol — Foto: BBC: KOJIHIRANO/GETTY IMAGES
Este cenário único inspirou centenas de estudos nos 27 anos que se seguiram à sua designação como monumento nacional. Foram realizadas pesquisas para saber como a geologia do local pode dar uma ideia da hidrologia de Marte.
Foram também descobertos alguns dos fósseis de marsupiais mais antigos já identificados e muitas espécies de dinossauros antes desconhecidas. Uma delas é o mais antigo mosassauro da América do Norte – um réptil de 94 milhões de anos encontrado em junho de 2023, chamado Sarabosaurus dahli.
“Em média, uma nova espécie é formalmente reconhecida todos os anos, como resultado das pesquisas paleontológicas realizadas no monumento”, segundo a porta-voz do Escritório de Gestão de Terras, Megan Crandall. O escritório é o órgão governamental responsável por cuidar de todos os terrenos públicos americanos, incluindo o monumento nacional.
“Um tiranossauro T2 escavado na Formação Kaiparowits em 2020 era tão grande que os cientistas tiveram dificuldade para definir como dividir o espécime para transporte”, ela conta.
Além disso, sua topografia de labirinto faz supor que seriam encontrados poucos sinais de ocupação humana. Mas o terreno abriga exemplos dispersos de petróglifos antigos, locais tradicionais de acampamento, cemitérios e celeiros.
De fato, o local é um tesouro da cultura e do folclore dos povos nativos americanos. No idioma navajo, a estrutura montanhosa da região ainda recebe o nome de Dził Bizhiʼ Ádiní – “a montanha cujo nome está faltando”.
Histórias como estas são agora reveladas pelo Museu do Parque Estadual Anasazi, que faz fronteira com o monumento nacional na grande altitude da cidade de Boulder, em Utah.
O mais notável é que cerca de 162 mil artefatos já foram recuperados do local onde os Anasazi um dia lutaram para sobreviver. Também conhecidos como os povos Pueblo ancestrais do oeste americano, os Anasazi viveram na região perto do ano 200 a.C.
“Os Anasazi realmente sobreviveram aqui no fim do mundo”, segundo a gerente do parque, Jamie Skidmore. Ela agora se dedica a dar voz aos fantasmas do passado.
“Este lugar sempre foi difícil para sobreviver com a falta de água e comida e não surpreende que essa antiga comunidade, um dia, tenha fugido devido às dificuldades e à seca”, afirma ela.
Atualmente, o turismo ajuda a mudar as perspectivas e o cenário está sendo lentamente desvendado.
Grande parte do monumento só é acessível a pé. Algumas trilhas podem ser encontradas em um mapa interativo administrado pela organização Grand Canyon Trust, parceira do Escritório de Gestão de Terras.
Desfiladeiros como Peek-a-boo e Spooky, além das trilhas que levam a lugares como a cachoeira Lower Calf Creek Falls e o desfiladeiro Willis Creek Narrows, fazem o queixo dos visitantes cair e o coração bater mais forte.
“Estas terras são fontes de inspiração e aprendizado para alguns e fontes de paz, resiliência e unidade para outros”, afirma Harry Barber, gerente do Distrito Paria River, uma unidade do Escritório de Gestão de Terras no sul de Utah.
“Toda manhã, as pessoas podem me encontrar em algum lugar do monumento, normalmente correndo ou andando de bicicleta”, ele conta. “Vou até lá para preparar minha mente para o dia que começa. Enquanto estou na trilha, costumo ver outras pessoas, que só posso suspeitar que estejam ali por motivos parecidos.”
Fica muito claro que a terra continua nos ensinando – e pode trazer lições inesperadas para os visitantes incautos.
A cobertura de celular no monumento, quando existe, é esparsa. Cedros e pinheiros derrubam seus próprios galhos para sobreviver no calor extremo. E não é raro que pessoas acabem mortas nas enchentes súbitas dos desfiladeiros.
Tudo isso serve para nos lembrar que a aventura – elementar, infinita e imprevisível – nunca está distante no mais selvagem monumento nacional dos Estados Unidos.
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