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A saga de 5 amigos marcados pela guerra na Ucrânia

today6 de março de 2023 13

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As mãos de Anastasiia Okhrimenko e Anna Korostenska tremem no frio. Um ritual de intimidade do tempo em que os homens ainda estavam vivos – no fim do dia, quando o casal ficava a sós – tornou-se uma tradição sombria mantida após a morte.

Oleksii e Yurii foram mortos na frente leste da guerra da Ucrânia, com cinco meses de intervalo. Um deles era o melhor amigo de Vadym Okhrimenko e morreu em seus braços. “Foi embora em um instante”, diz ele, empacotando rapidamente seu uniforme e seu equipamento de combate. Ele logo retornará ao campo de batalha, sob o peso da tristeza e com sede de vingança.

Os cinco se conheciam desde a infância. Eles se tornaram adultos em Bucha, um subúrbio de Kiev que se tornou sinônimo das piores atrocidades da guerra. Suas histórias entrelaçadas revelam como a invasão russa na Ucrânia, um ano atrás, mudou suas vidas, seu bairro, seu país.



“Esta guerra não é apenas uma questão de soldados”, diz Anna. “Diz respeito a todos que estão ligados a eles, e sua dor.”

Moradores de Bucha se reúnem enquanto Anna Korostenska e seus familiares velam o corpo de Oleksii Zavadskyi, um soldado ucraniano que morreu em combate em 15 de janeiro em Bakhmut, durante o funeral, em Bucha, Ucrânia, em 19 de janeiro de 2023 — Foto: Daniel Cole/AP

A cada mês que passava, novas camadas sedimentares de luto se formavam: ocupações violentas seguidas por separações chorosas e esperas intermináveis. Entre as caóticas linhas de frente, onde a vitória se transformou em desgaste, e as casas atingidas por constantes ataques aéreos e cortes de energia, o amor floresceu, amizades se aprofundaram e o medo da morte se instalou.

À medida que se perpetua o conflito que matou seus entes queridos, Anna, Anastasiia e seu irmão, Vadym, lidam com uma pergunta que assombra toda a Ucrânia devastada pela guerra: depois da perda, o que vem?

Em Bucha, paisagens familiares da infância foram imbuídas de uma nova e sombria história.

Há o prédio atrás do parquinho onde dezenas de pessoas buscaram abrigo contra as tropas russas que se aproximavam; as garagens em que os soldados russos colocaram fogo e mataram as pessoas que estavam escondidas; o supermercado, de onde atualmente saem os cortejos fúnebres.

A ocupação, que durou 33 dias, do começo da invasão em 24 de fevereiro até 1º de abril, quando as tropas russas recuaram, tornou-se um forte símbolo dos horrores da guerra. A libertação revelou o assassinato em massa de civis e relatos cruéis de estupro. Mais de 450 pessoas foram mortas, segundo as autoridades locais.

Anastasiia fugiu para outra região. Anna permaneceu em Bucha até 10 de março. Ela passou noites no abrigo enquanto os tanques russos passavam por seu bairro de Sklozavod, quando soldados saquearam lojas e atropelaram um homem sentado em um carro. Ela presenciou tudo isso.

“Ainda estamos processando”, diz Andrii Holovyn, de 50 anos, padre da comunidade, que celebrou o funeral de Yurii e de inúmeros outros soldados depois dele. “As pessoas vivem em perigo constante, sem luz, sem pausas.”

A ocupação impulsionou os amigos de infância a agir. A mãe e a irmã de Oleksii fugiram para a Alemanha. A esposa de Vadym fugiu para a República Tcheca. Yurii pediu a Anastasiia para deixar o emprego e ficar em casa.

Anna Korostenska toca um retrato de seu falecido noivo, Oleksii Zavadskyi, em seu túmulo em Bucha, Ucrânia, em 23 de janeiro de 2023 — Foto: Daniel Cole/AP

Os três homens eram muito diferentes entre si. Yurii tinha uma aura de eterna juventude, o tipo de pessoa que abria um largo sorriso mesmo quando estava enfurecido. Oleksii era brigão, rebelde por fora mas profundamente introvertido. Vadym, de poucas palavras, que se descreve como um “hooligan do futebol”, era o líder.

Abalados pelo massacre em sua cidade natal, eles se juntaram ao exército na primavera de 2022.

Ninguém poderia se dar ao luxo de cruzar os braços e ficar assistindo a guerra acontecer, disse Vadym.

Anastasiia Okhrimenko segura a aliança de casamento dada a ela por seu falecido marido, Yurii Stiahliuk, em sua casa em Bucha, Ucrânia, em 22 de janeiro de 2023 — Foto: Daniel Cole/AP

Vivendo entre um telefonema e outro

Foi nesse momento que Anastasiia decidiu pedir Yurii em casamento.

Foi sua forma de dizer a ele que podia contar que ela iria esperá-lo. Eles estavam juntos havia sete anos, um relacionamento que começou no dia em que Yurii, o garoto que ela conhecera na infância como amigo do irmão, reapareceu em sua vida com um inocente cumprimento pelas redes sociais.

“Percebi que ele era a única pessoa com quem eu conseguia imaginar meu futuro”, conta ela.

Foi uma cerimônia sem frescuras. Os papéis foram assinados, houve a troca de alianças. Mas os planos futuros eram elaborados. “Primeiro, precisávamos vencer essa guerra”, diz Anastasiia, girando a aliança no dedo. “Provavelmente, a primeira coisa que faríamos depois disso seria uma lua-de-mel.”

Yurii chegou à cidade de Kramatorsk, no leste, em julho, indo em direção a Bakhmut, uma cidade de mineração de sal, que se tornaria o centro da mais longa batalha da guerra. Anastasiia conta: “Eu vivia entre um telefonema e outro.”

Através dos relatos dele, ela testemunhou o inferno da guerra.

Anna Korostenska, de 24 anos, cai de joelhos diante do túmulo de seu noivo Oleksii Zavadskyi, um soldado ucraniano que morreu em combate em 15 de janeiro em Bakhmut, durante o funeral, em Bucha, Ucrânia, em 19 de janeiro de 2023 — Foto: Daniel Cole/AP

A Rússia havia mudado de tática, retirando tropas do norte após a forte resistência ucraniana e se concentrando no que Moscou denominou “libertação” da região contestada de Donbass.

A correspondência entre Yurii e Anastasiia ao longo de seis meses revelou que sua unidade estava em constante movimento. As batalhas de bombardeio e artilharia eram incessantes, ele contava. Depois de uma noite de intenso bombardeio, ele mandou uma mensagem: “com certeza vou voltar”, com um emoji mandando um beijo em forma de coração.

Em agosto, ele reclamou que o inimigo tinha armas mais avançadas, enquanto eles precisavam se virar com armas automáticas. Sem alternativa, eles passavam horas escondidos nas trincheiras.

Na noite anterior ao Dia da Independência da Ucrânia, em 25 de agosto, Yurii disse que esperava que os russos fossem marcar a ocasião com mísseis. Ele prometeu dormir no corredor, longe das janelas.

Posteriormente, voltou à frente de batalha. Quando o bombardeio cessou por um momento, Yurii correu até o carro, pensando que teria tempo suficiente enquanto o inimigo recarregava as armas.

Então, o tiroteio recomeçou.

Foi Vadym, não Yurii, quem ligou para Anastasia naquela manhã. Ele tinha más notícias para contar do Comissariado Militar.

“Diga para mim que não é verdade”, foi a última mensagem que ela enviou ao marido. “Eu te imploro, diga para mim que você está vivo.”

Setembro foi um ponto de virada.

A Ucrânia lançou contra-ofensivas surpresa nas regiões do norte e do sul, prejudicando a imagem do poderio militar russo. Kiev foi encorajada a pleitear mais armas dos hesitantes países ocidentais para sustentar o combate, e Oleksii finalmente reuniu coragem para dizer a Anna pela primeira vez que a amava.

Era um caso que só eles dois entendiam, em que momentos afetuosos podiam rapidamente se transformar em discussões acaloradas.

O primeiro beijo de Anna foi com Oleksii, aos 15 anos, mas não havia um relacionamento propriamente dito até a morte de Yurii. Isso mudou Oleksii. O rapaz revelou que fora apaixonado por ela a vida inteira, mas havia se mantido afastado porque ela estava com um de seus amigos. Agora ele não se importava mais.

“A morte de Yurii nos levou a aceitar o fato de que você pode fazer qualquer coisa nesta vida enquanto ainda está vivo”, diz Anna.

Depois do funeral de Yurii, Anna planejara passar a noite com Anastasiia para confortar sua amiga enlutada. Oleksii, que havia pedido afastamento para comparecer ao enterro, acompanhou a moça até a porta e a beijou.

Depois disso, ele ligava para ela quase todos os dias.

Soldados ucranianos carregam o caixão de Oleksii Zavadskyi, um soldado ucraniano que morreu em combate em 15 de janeiro em Bakhmut, durante o funeral, em Bucha, Ucrânia, em 19 de janeiro de 2023. (Foto AP/Daniel Cole) — Foto: Daniel Cole/AP

Em meados de setembro, ele parecia especialmente cansado em uma videochamada enquanto estava em Zaporizhzhia. Pediu a Anna para ajudá-lo a descobrir por quanto tempo os soldados poderiam conseguir afastamento temporário. Ele enviou um link para ela, uma página de informações para militares que pretendiam requerer afastamento para se casar.

“Zavadskyi, você quer sair de férias ou se casar?”, provocou ela.

“Vamos unir o útil ao agradável”, ele respondeu. Esse era o estilo de Oleksii. Eles ficaram noivos.

Antes que o outono se transformasse em inverno, a Ucrânia libertou as cidades de Kharkiv, ao norte, e Kherson, ao sul. Essas vitórias aumentaram a moral das tropas, mas foram obtidas pouco a pouco com ajuda das armas ocidentais que desgastaram as forças e linhas de abastecimento russas.

No leste, estava mais difícil vencer. As forças russas, auxiliadas por mercenários do Grupo Wagner, empregaram táticas de onda humana para exaurir as defesas ucranianas. Em 11 de janeiro, Oleksii foi destacado para uma posição próxima a Bakhmut, muito perto da mesma frente onde Yurii fora morto.

Em 13 de janeiro, ele telefonou. Estava frio demais para dormir, ele contou, trêmulo. As linhas de combate estavam muito próximas; ele estava a 15 metros dos inimigos. Ele estava com medo.

Em batalhas de longo alcance, não é fácil saber quando você matou alguém, explicou. Ele já havia enviado vídeos de si mesmo nessas posições, atirando em direção às distantes linhas inimigas, gritando: “Por Stiahliuk!” – por Yurii. Mas ali, ele conseguia ver claramente como caíam os corpos dos homens que ele aniquilara.

Anna disse a ele, rispidamente: “Você tem que entender: se não matar, eles matam você.”

Ele morreu no dia seguinte, com uma bala no pescoço.

Anna Korostenska abraça um retrato de seu falecido noivo, Oleksii Zavadskyi, ao posar para uma fotografia na casa da avó do rapaz, em Bucha, Ucrânia, em 2 de fevereiro de 2023 — Foto: Daniel Cole/AP

Até serem realocados para o leste, eles se sentiam invencíveis. Em Zaporizhizhia, haviam capturado dois prisioneiros após uma emboscada e pressionado os russos a recuarem pelo menos 10 quilômetros. Oleksii era soldado de infantaria e dirigia o veículo blindado do pelotão.

Em Bakhmut, foram encarregados de manobras perigosas ao pé do flanco, perto das linhas inimigas.

“Você tem que lutar todos os dias, a cada minuto”, diz Vadym.

Os ataques russos pareciam incessantes; os soldados passavam andando pelos corpos de seus próprios companheiros na investida implacável rumo às posições ucranianas.

Em meio ao tiroteio de 14 de janeiro, Oleksii subitamente caiu. Como não havia sangue, Vadym achou que ele sofrera um choque.

Ele arrastou o amigo até encontrar cobertura e tentou sentir seu pulso. Ele jurou ter sentido uma pulsação, mas o médico no local disse que Oleksii morrera instantaneamente.

Dessa vez, Vadym não conseguiu ligar para Anna. Como comandante do pelotão, Vadym se sentia responsável por proteger seu melhor amigo. Ele prometera ao pai de Oleksii, Sergey, que o levaria vivo de volta para casa. “Senti vergonha”, diz. Yurii estava em uma unidade diferente.

“Não existem palavras douradas ou milagrosas que possam aliviar instantaneamente a dor”, diz Holovyn, o padre cujos fiéis o procuram com histórias de sofrimento.

Certo dia, a professora da escola dominical contou a ele que o marido morrera na frente de batalha, mas que seu corpo permanecia em território controlado pela Rússia. Deitado lá, na neve.

Em Bucha, algumas pessoas já começaram a reconstruir. O cheiro de serragem paira no ar, enquanto os trabalhadores consertam telhados destruídos e moradores abraçam a precariedade de viver sem paz.

Na casa da avó de Oleksii, em Bucha, Anna segura camisas de seu noivo para sentir o cheiro dele que ainda resta. “Dizem que a Terra gira. Minha Terra parou”, diz.

O tempo também não facilitou as coisas para Anastasiia. “Você sai de um estado de choque e começa a perceber o que realmente está acontecendo.” Ela às vezes ainda se pega esperando um telefonema.

Lado a lado, as mulheres estiveram juntas nos funerais dos homens que amavam. “Só Nastya me entendia, como ninguém mais”, diz Anna, usando um apelido para Anastasiia e apertando sua mão.

Para Vadym, chegou a hora de partir. “Só os idiotas não têm medo nenhum”, diz, percebendo que é o último de seus irmãos de armas. “Mas vou tentar sobreviver.”

No dia seguinte, ele foi embora.

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Por: G1

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