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‘Copa masculina tem que deixar legado para as mulheres do Catar’, diz Ana Thaís Matos

today23 de novembro de 2022 19

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“Essa Copa marcou uma virada de chave na minha cabeça, alimentou muitos dos sonhos que eu estou realizando hoje”, conta ao g1.

Vinte anos depois, ela vive outro Mundial decisivo, agora in loco, como integrante da equipe de jornalismo esportivo da Globo, que viajou para o Catar para cobrir os jogos de 2022. Ana Thaís será a primeira mulher a comentar as partidas da Seleção Brasileira em uma Copa do Mundo masculina.

Criada na periferia de Itanhaém, no litoral de São Paulo, ela foi aluna de escola pública, mudou-se sozinha para a capital aos 17 anos e conseguiu cursar a faculdade de jornalismo graças a uma bolsa de estudos.



Ao longo de uma década de profissão, chegou a ouvir que “homem só quer uma mulher gostosa falando do time dele”. Mas o machismo não a fez desistir: como comentarista, ganhou quadro fixo no programa “Encontro” e se tornou em 2018 a primeira mulher comentarista em um jogo de futebol masculino na Globo, em rede aberta.

Hoje, ela vive seu momento de glória no torneio do Catar. Mas o mais importante é que não está sozinha.

Nesta semana, o g1 conta as histórias das profissionais que vão cobrir a Copa do Mundo 2022. Veja, de segunda a sábado, entrevistas com comentaristas e narradoras que você já ouviu ou vai ouvir durante os jogos no Catar.

“Nós saímos do lugar do entretenimento e passamos a ocupar o lugar de opinião dentro do jornalismo esportivo”, avalia. “Se você liga a TV de manhã e passa pelos principais canais de esporte, sempre vai ter uma mulher debatendo.”

Da esq. para a dir., as narradoras Renata Silveira e Natália Lara e as comentaristas Renata Mendonça e Ana Thaís Matos; todas participam da cobertura da Copa do Mundo no Catar — Foto: Reprodução/Instagram/Ana Thaís Matos

Sua presença – e das colegas – é ainda mais simbólica no Catar, onde mulheres são oprimidas e vivem sempre guiadas pela tutela de pais e maridos. Em um dos mundiais mais controversos da história, as leis intolerantes do país anfitrião têm gerado protestos e boicotes.

“A Copa do Mundo masculina tem que deixar um legado para as mulheres do Catar”, diz a comentarista. “Eu espero muito que os questionamentos sociais dessa Copa passem pelo papel da mulher, pela liberdade feminina.”

Na entrevista abaixo, Ana Thaís fala das outras expectativas para a Copa de 2022, relembra o início da relação com o esporte e conta como se tornou um dos principais rostos da nova geração de comentaristas esportivos.

Também comenta a pressão que sofre na internet, nem sempre gentil com quem fala de futebol por profissão. Em 2020, ela chegou a ter o número de celular vazado depois de criticar o anúncio do retorno de Robinho ao Santos. Na época, ele respondia na Justiça italiana a uma acusação de estupro coletivo, cometido em 2013. Meses depois, o jogador foi condenado, e o acordo com o time acabou sendo desfeito.

“Durante muito tempo eu e outras mulheres nos sentimos muito sozinhas [nas redes sociais]. Mas eu tenho para mim que o pior já passou.”

g1 – Você costuma dizer que divide a vida em Copas do Mundo. Qual foi sua Copa mais importante?

Ana Thaís Matos – A de 2002. Eu tinha 16 para 17 anos e estava numa fase familiar muito complicada. Tinha que tomar algumas decisões. Assisti a todos os jogos com minha mãe e minha irmã e percebi que eu queria viver aquilo, queria estar perto. Foi depois desse Mundial que eu resolvi mudar de cidade, sair de Itanhaém para morar em São Paulo.

Essa Copa marca uma virada de chave na minha cabeça. De alguma forma, ela me encorajou a mudar minha vida, a correr atrás dos meus sonhos. Eu não sou uma pessoa de muitos planos porque acho que as coisas mudam muito rápido, mas eu tenho muitos sonhos. E a Copa de 2002 alimentou muitos dos sonhos que eu estou realizando hoje.

g1 – Diante de tantos protestos e boicotes ao Catar, você acha que essa Copa terá um aspecto político mais forte do que as outras?

Ana Thaís Matos – Vai ter um viés político-social muito forte. As Copas são marcadas por isso. A Copa de 1934, por exemplo, foi usada pelo [ditador italiano Benito] Mussolini como propaganda do fascismo. A Copa sempre tem um recorte político muito forte porque você reúne países do mundo inteiro, praticamente. Tem muita diversidade cultural, política, econômica, social.

Do ponto de vista do Brasil, como é uma Copa depois as eleições, acho que tem tudo para ser mais voltada para o futebol. Mas não acho que vamos deixar de discutir política porque uma coisa está associada a outra.

Do ponto de vista de outros países, a cultura islâmica será questionada por muitos ocidentais. Eu tenho trabalhado pensando muito nisso: acho que a Copa do Mundo masculina tem que deixar um legado para as mulheres do Catar. Esse é um ponto fundamental.

‘Vamos ter uma Copa do Mundo feminina no ano que vem e a gente quer mais mulheres praticando futebol, e também vivendo o futebol na arquibancada. Então eu espero muito que os questionamentos sociais dessa Copa passem pelo papel da mulher, pela liberdade feminina.”

Estou esperando uma Copa muito masculina, com estádios cheios de homens, com muitos jornalistas homens. Acho que nós, como grupo, vamos quebrar um paradigma muito importante nesse Mundial.

Parte da equipe do jornalismo esportivo da Globo, que viajou para o Catar para cobrir a Copa de 2022 — Foto: Reprodução/Instagram/Ana Thaís Matos

g1 – Você acha que o futebol masculino tem contribuído pra igualdade de gêneros no esporte?

Ana Thaís Matos – Ele é um agente. O futebol é um agente social, a gente nunca pode esquecer disso. Às vezes me perguntam se eu inspiro outras meninas a serem comentaristas. O mais importante para mim é que essas meninas sejam ouvidas. No colégio, elas têm que falar do time do coração, com 9, 10 anos, e os meninos têm que ouvir e debater com elas. Acho que isso é o principal. Se elas vão se tornar jogadoras, jornalistas, advogadas, aí é outra coisa.

A gente tem hoje pouquíssimas mulheres na linha de frente dos times masculinos. Eu estou falando de treinadoras, dirigentes, médicas… O ambiente do futebol ainda é muito restrito. E o jornalismo esportivo não é diferente disso, mas estamos vendo a máquina girar.

g1 – Você já falou em entrevistas que o futebol enxerga a mulher num lugar de entretenimento para os homens. Isso também acontece no jornalismo esportivo?

“A mulher foi, e ainda é muito invalidada no lugar da opinião. Sempre foi permitida uma: uma apresentadora, uma comentarista, sempre um espaço individual.”

A sociedade sempre impediu a chegada coletiva: uma transmissão só de mulheres, um grupo só de mulheres debatendo futebol, um programa só de mulheres, três mulheres e um homem… Isso é uma conquista recente: nós nos principais programas esportivos, que até então eram dominados por homens. Isso mudou, eu acho que esse é o grande ponto.

Ouvi uma frase uma vez em 2009, que nunca esqueci.

“Fui pedir para fazer um teste de repórter numa emissora em São Paulo e o chefe me falou o seguinte: ‘No esporte, no fim das contas, o homem só quer olhar se tem uma mulher gostosa falando do time dele e acabou’. Aquilo me feriu muito.”

E o que eu estudo? E o meu preparo? Essas questões ficaram na minha cabeça. Será que é esse o lugar que a gente vai ocupar? Ter que ser sempre o padrão bonita e magra? Será que é isso? Aos poucos, as coisas foram mudando porque a gente foi recontando essa história. Nós saímos do lugar do entretenimento e passamos a ocupar o lugar de opinião dentro do jornalismo esportivo

Se você liga a TV de manhã e passa pelos principais canais esportivos, sempre vai ter uma mulher debatendo. Eu acho que esse é o principal legado das mulheres da minha geração no jornalismo esportivo. A gente encontrou um momento em que a sociedade está a fim de discutir a presença das mulheres.

E não é só a presença, mas também o ambiente que você proporciona para que essas mulheres consigam performar. Não adianta colocar mulheres com caras que nos tratam mal, que nos deixam nervosas, que descredibilizam a nossa opinião. Você também precisa criar um ambiente positivo para que a gente consiga ficar confortável naquele cenário.

g1 – Na adolescência, você chegou a tentar uma carreira como jogadora de futebol. Como nasceu essa relação com o esporte?

Ana Thaís Matos – Cresci numa cidade do litoral de São Paulo, Itanhaém. E, lá, é muito forte a questão do esporte. Você acaba sendo colocado diante do esporte porque as escolas estimulam. Joguei futsal, futebol, beach soccer e pratiquei capoeira, porque meu irmão era das artes marciais e achava que eu deveria fazer alguma luta.

Também fiz jazz, teatro… Eu não eu não me considero uma pessoa hiperativa, mas sempre fui muito ativa, no sentido de ter muita coisa para fazer, gostar de estar ocupada. Acabei focando no futebol, que foi o que me pegou mais. Tinha um campo de terra na rua da minha casa, e um time de meninas que nós formamos.

g1 – Era uma paixão compartilhada pela sua família?

Ana Thaís Matos – É mais da minha mãe. Ela é mais voltada para o esporte, apaixonada por futebol, uma pessoa de arquibancada. Futebol sempre foi assunto lá em casa. Tenho uma irmã que é muito corintiana e duas que são muito são paulinas. Meu irmão, que é palmeirense, era o que menos falava do assunto. Futebol, na minha casa, sempre foi um assunto das mulheres.

Ana Thaís com a mãe, na formatura do colegial — Foto: Reprodução/Instagram/Ana Thaís Matos

g1 – Como você chegou ao jornalismo?

Ana Thaís Matos – Terminei o colégio em 2003 e não tinha condições de fazer uma faculdade. Na época, eu já trabalhava em outra área, já morava sozinha. Fui muito mal nos vestibulares, então eu dei um tempo, fui trabalhar com outras coisas.

Eu estava estudando para fazer letras na USP [Universidade de São Paulo], porque eu queria ser professora. Achava que a faculdade de jornalismo era inviável para mim por dois motivos: porque as particulares eram muito caras e porque, na pública, o vestibular era muito difícil. Eu trabalhava e não tinha uma base muito forte por ter estudado em colégio público, então eu achava muito difícil entrar em jornalismo na universidade pública.

No vestibular de 2007 para 2008, eu já tinha tomado pau em vestibulares por três anos seguidos. Prestei a PUC São Paulo e fiz a inscrição pelo ProUni, para ver se eu conseguia uma bolsa, porque eu não ia conseguir pagar a faculdade. Tinha colocado duas opções: letras na primeira e jornalismo na segunda, porque a faculdade de jornalismo não dava bolsa de 100%, só 50%.

Perdi na segunda fase para letras na USP. E aí, um dia, estava na praia, em Itanhaém, e pensei: o que que eu vou fazer da minha vida? Eu não aguentava mais fazer cursinho pré-vestibular, já trabalhava muito, 10 horas por dia. Fui abrir o e-mail numa lan house e tinha uma mensagem do Ministério da Educação me convocando para levar meus documentos na PUC, porque eu tinha sido aprovada para minha segunda chamada, em jornalismo. Tinha ido muito bem no Enem, especialmente na redação. Então puxaram minha bolsa de 100% para o jornalismo.

g1 – Você tem muita experiência na reportagem de esporte. Como comentarista, sente falta da cobertura de campo?

Ana Thaís Matos – Eu fiquei na reportagem de 2012 a 2018. Acho que a principal mudança foi ter perdido um pouco do contato com a rua, com o campo. Mas, ao mesmo tempo, me deu uma visão mais ampla do que é o futebol falado, da responsabilidade que temos, enquanto comunicadores, de falar sobre futebol, uma paixão nacional.

Eu tinha uma visão muito micro, do dia a dia do campo. Depois que eu passei a trabalhar por trás dos campos, comecei a perceber que tem um negócio muito maior, uma responsabilidade muito maior quando você fala de futebol como comentarista.

Tive que romper com muitas fontes. Acho muito complicado você ficar refém de quem te dá informação, e ao mesmo tempo ter que criticar aquela pessoa. Não condeno quem não faz isso, essa foi uma opção minha. Eu sou uma pessoa extremamente crítica, às vezes até de modo exagerado, e eu acho que esse foi um caminho que eu encontrei para me manter isenta.

Ana Thaís em 2017, quando era repórter de campo — Foto: Reprodução/Instagram/Ana Thaís Matos

g1 – Você tem um quadro de esporte dentro de um programa que não é especificamente sobre esse tema. Você acha que, ao longo dos anos, o jornalismo esportivo se orientou mais para pessoas leigas no assunto? Que mudanças isso causou?

Ana Thaís Matos – De 2009, 2010 para cá, a gente passou, como televisão, a tentar popularizar o que já é popular. Se você usa uma linguagem muito acadêmica, não importa se você está falando de política, de culinária, de cultura, você vai falar com um nicho. Mas quando você traz para a linguagem do dia a dia, mais objetiva, mais popular, isso tende a alcançar um público maior. A TV aberta me trouxe e me ensinou isso.

Eu trabalhei em rádio AM, na Rádio Globo, que num primeiro momento falava para um público [das classes] C e D, para muitas pessoas que estavam trabalhando: o caminhoneiro, a dona de casa… Não posso privar esse público de conhecer a linguagem acadêmica, porque eu acho que, quanto mais você expande o conhecimento, mais as pessoas se sentem confortáveis. Mas, ao mesmo tempo, eu não posso tirar essas pessoas do debate. Não posso usar uma linguagem que vá exclui-las.

A TV aberta e o “Encontro” me trouxeram essa consciência. O período em que eu trabalhei com a Fátima [Bernardes], principalmente. Ela me abriu muito o horizonte de como você pode traçar alguns perfis no dia a dia e atingir aqueles perfis. Eu acho que eu tenho hoje a condição de atender várias demandas: a transmissão mais nichada do Premiere e do SporTV, mas também a transmissão e os programas da TV aberta.

Ana Thaís com Fátima Bernardes, que apresentava o programa ‘Encontro’ — Foto: Reprodução/Instagram/Ana Thaís Matos

g1 – Você faz parte de uma geração de profissionais da TV que ganhou relevância também nas redes sociais. Sente que isso gera uma pressão para alimentar as suas redes, mesmo quando você não está trabalhando?

Ana Thaís Matos – Com certeza. Eu já tive várias relações com as redes. Já tive um período em que eu estava mais engajada, em que falava: preciso fazer esse nicho acontecer.

“A rede social é um espaço conquistado, mas as pessoas estão tentando te silenciar o tempo inteiro, dizer como você deve ou não se comportar.”

Ao mesmo tempo, recebo muita mensagem de pessoas que não têm TV por assinatura e me acompanham pelo Instagram ou outra rede social. Eu também não posso privar essas pessoas de ter acesso a um conteúdo. Mas tem sim essa pressão. Durante um tempo eu achei muito nociva. Hoje, eu acho que depende de mim: eu toco do jeito que dá.

g1 – Por comentar esporte, você é frequentemente atacada nesses espaços. Como os haters te afetam emocionalmente?

Ana Thaís Matos – Já foi muito pior. Até 2020, 2021, eu sofria muito. Já aconteceu de o corpo doer, o cabelo cair, de ter que procurar ajuda da terapia. Durante muito tempo eu e outras mulheres nos sentimos muito sozinhas [nas redes sociais]. Como eu falei, estamos lá para as pessoas falarem o que não devemos fazer. Eles não estão acostumados com as mulheres ocupando esse espaço. Mas eu tenho para mim que o pior já passou. Eu tomei algumas decisões. Entendi que, talvez, para essas pessoas, a rede social é tudo que elas têm. Elas precisam muito mais de mim do que eu delas.

Eu não posso controlar o que as pessoas pensam ou falam sobre mim, desde que não sejam agressivas, que não inventem mentiras, como acontece o tempo inteiro: inventam coisas que eu não disse. Hoje eu acho que tenho uma relação mais saudável. Fechei minha conta no Twitter, porque eu acho que é um ambiente que não me acrescenta em nada. Sinto falta da troca, de comentar a novela, o ‘BBB’… Acabei perdendo esse espaço, mas tem me feito melhor.




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Por: G1

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