Quando o corpo é retirado do local do crime, o trabalho da perícia fica prejudicado, e é difícil constatar, por exemplo, se houve um homicídio ou uma Morte Decorrente de Intervenção Policial (MDIP) — quando alguém é baleado em confronto com a polícia, segundo especialistas em segurança pública ouvidos pelo g1.
De acordo com promotores e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a retirada dos corpos, se for confirmada, pode ser enquadrada como crime de fraude processual. A pena prevista na lei é de três meses a dois anos de detenção, e multa.
Para esta reportagem, o g1 teve acesso, com exclusividade, a dez boletins de ocorrência que se referem a 17 das 39 mortes ocorridas durante a operação da PM. Nos dez registros, a polícia alega que os mortos eram criminosos e que foram baleados por estarem armados. No caso de 12 pessoas mortas, há a informação de que elas foram socorridas e levadas com vida ao pronto-socorro, onde teriam morrido.
Com pequenas variações, a informação presente nos boletins obtidos pelo g1 é a seguinte: “Os policiais foram recebidos a tiros e houve confronto. Um suspeito foi atingido e levado ao Pronto-Socorro, mas não resistiu”.
Relatos de funcionários do sistema de saúde de Santos, no entanto, diferem do que está escrito nos boletins.
O porta-voz da PM de São Paulo, Émerson Massera, afirmou, em entrevista ao g1 e à TV Globo, que as denúncias e os diálogos com os socorristas serão analisados.
“As notícias que foram relatadas, que foram trazidas, vão ser analisadas, os diálogos com socorristas. Para que a gente consiga identificar as causas e identificar os motivos e se houver necessidade de adotar providências pelos fatos que já ocorreram serão adotados”, disse.
“A perícia num local de crime é fundamental para a resposta, até no sentido de responsabilizar quem cometeu aquele crime. Uma violação de local de crime acaba atrapalhando toda a cadeia de provas. Isso é péssimo para a Polícia Militar, para o sistema de Justiça. Isso é péssimo para manter o local de crime preservar o local de crime de modo que a perícia consiga fazer o seu trabalho é fundamental para o ciclo de polícia e para o ciclo também de percepção criminal. Então, nossa preocupação é grande, é um problema que nós refutamos da máxima gravidade e temos o máximo interesse também em fazer com que o local continue sendo preservado, até que a perícia faça todo o seu trabalho”, completou.
Esta reportagem abordará as denúncias a partir dos tópicos abaixo:
- Informações diferentes nos BOs sobre mortes
- Brinde por transporte de corpo
- Perícia prejudicada sem corpo no local
- Boletim de ocorrência x declaração de óbito
- Pedido à ONU para encerrar operação
- Operação Verão
Informações diferentes nos BOs sobre mortes
Desde o assassinato de Samuel Wesley Cosmo, agente das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), tropa de elite da PM, em 2 de fevereiro, 39 pessoas foram mortas pela polícia paulista na Baixada Santista, em cidades como Santos, Guarujá, São Vicente e Cubatão. No início da operação, o secretário da Segurança Pública (SSP), Guilherme Derrite, transferiu seu gabinete para a Baixada.
Em todos os dez boletins de ocorrência de mortos pela operação, aos quais o g1 teve acesso, PMs alegaram que reagiram e atiraram e mataram 17 criminosos armados. Em oito desses dez boletins, a informação incluída é a de que 12 pessoas foram levadas feridas a unidades de saúde, onde teriam morrido.
Com pequenas variações, a informação presente nos boletins obtidos pelo g1 é a seguinte: “Os policiais foram recebidos a tiros e houve confronto. Um suspeito foi atingido e levado ao Pronto-Socorro, mas não resistiu”.
Funcionários do Sistema de Saúde de Santos, que não serão identificados na reportagem, para não sofrerem possíveis retaliações, afirmaram, no entanto, que, diferentemente do que está descrito nos boletins de ocorrência das mortes, os baleados e mortos da operação não foram socorridos ainda com vida.
“A própria polícia traz, traz, deixa aí… Já chega morto, já…. [Fazem isso] Só pra tirar [do local onde baleou a pessoa]”, diz um funcionário que trabalha na Santa Casa, um dos hospitais que mais receberam vítimas da operação na Baixada Santista.
“Chegaram em óbito pra nós. Foi uma troca de tiro com a polícia. E quando deu entrada já estava em óbito”, falou a funcionária.
Outro funcionário do Samu de Santos confirma que as vítimas são retiradas sem vida para evitar perícia.
“E aí não tem perícia… Não sabe como é que o cara tava… ‘Ah, foi encontrado como?’ Não sabemos… Às vezes, a gente é chamado na delegacia para depor [sobre] como que estava o corpo”, fala um funcionário do Samu.
Em nota, a Secretaria da Saúde de Santos afirmou que quando o óbito é constatado no local, o Samu aciona o IML. Secretaria disse ainda que vai abrir sindicância para apurar os fatos narrados.
“A Secretaria de Saúde de Santos não tem conhecimento de que equipes do Samu sofreram qualquer tipo de coação. Nenhum funcionário do serviço relatou a referida denúncia por meio dos canais de ouvidoria da pasta. Diante dos fatos narrados, a secretaria vai abrir uma sindicância para apurar o caso.
O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) presta os primeiros atendimentos no local do chamado e faz o transporte dos pacientes que necessitam de atendimento hospitalar para unidades de saúde da rede SUS. Quando chega ao local e constata que a vítima está em óbito, o SAMU aciona o IML – ou seja, não faz o transporte de pacientes que foram a óbito no local.”
Procurada para comentar o assunto, a Santa Casa de Santos informou, por meio de nota, desconhecer a denúncia:
“A Santa Casa de Santos, por meio de sua assessoria de comunicação, informa que o hospital não recebe pacientes em óbito e, se porventura algum dos pacientes falecer ao dar entrada, é feito o encaminhamento ao IML. A instituição não recebeu relatos referentes ao que foi perguntado.”
Brinde por transporte de corpo
Um funcionário também relatou que uma equipe do Samu levou para o hospital uma pessoa com um ferimento gravíssimo na cabeça e que, obviamente, não tinha mais chances de receber atendimento médico.
“[Chegam no hospital] Já sem vida. O médico pode até falar que estava respirando e morreu no caminho para evitar muitas coisas, entendeu? Aí, pô, tu vai lá e o cara está sem metade da cabeça, tiro de fuzil. Nós vamos fazer o quê? O cara tava em RCP… ‘Removemos em RCP’.”
RCP é a sigla usada pelos médicos para dizer que tentaram uma ressuscitação cardiopulmonar.
Os funcionários contam que tiveram que retirar muitas pessoas que já estavam mortas e eram dadas como vivas. Um deles diz que até ganhou uma caneta de um policial da Rota como agrado por ter feito esse transporte.
- Repórter: “Você pegou quantos assim?”
- Funcionário: “Vários, vários…”
- Repórter: “E sobre esse agora deste ano, você pegou?
- Funcionário: “Tanto peguei que ganhei até um brinque aqui, ó! O último que eu peguei, eu ganhei um brinde [tira uma caneta com a inscrição ‘Rota’ do bolso e mostra]. […] Essa é uma caneta da Rota. Esse foi do último que eu carreguei. […] Levamos para a UPA da Zona Norte, o cara levou um tiro de fuzil na cabeça”, diz.
Outro funcionário do Samu relatou que as equipes retiram os corpos para evitar “situações de insegurança”.
“Nesses casos, o que acontece quando a equipe do serviço de urgência chega à ocorrência? Ele se depara com uma situação já insegura, onde tem um policiamento ali, e depende da situação que cada cena é uma cena”, diz.
“Então, dependendo da situação, ele socorre a vítima, coloca para dentro da ambulância e transporta. Isso para prevenir algum dano maior futuramente com essa equipe, de ser hostilizado numa outra ocorrência ou no outro serviço”, conta.
“O médico do Pronto-Socorro ou da UPA não gosta muito, né? Porque você está levando um óbito para a unidade deles, mas é explicada a situação onde se encontrava a vítima, a cena encontrada, e a população. E já estava começando a ficar hostil não só com a Polícia Militar, mas também com a equipe do Samu”, continua.
“E aí a gente explica a situação, que foi socorrida a vítima a nível de clamor popular que a não gente tinha, é uma cena insegura até para a equipe do Samu”, completa.
Para o professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da USP, Mauricio Stegemann Dieter, o argumento da insegurança não se justifica e cabe investigação.
“O passo lógico seria chamar reforços, né, conseguir que um maior destacamento de pessoas pudesse assegurar a integridade da cena do fato. A remoção do cadáver em si é algo que não tem justificativa nem do ponto de vista lógico, nem do ponto de vista normativo, né? Se a produção do cadáver é o que produz a comoção, não é pela retirada daquela corporalidade que vai acabar, que vai fazer cessar a conflituosidade do evento, né?”, questiona.
“Naturalmente, isso é uma desculpa muito ruim para polícia estar ativamente adulterando cenas de homicídio e caberia então descobrir por parte do ministério público com qual finalidade”, completa o professor.
Esse mesmo funcionário disse que houve uma conversa prévia com forças de segurança sobre o apoio do Samu nesta operação.
“Houve uma conversa em que eles pediram o apoio do serviço do Samu, que não iam interferir no nosso cotidiano, pois eram diligências programadas, que tem um apoio tanto dos bombeiros como do grau e que não iam influenciar no nosso serviço. Caso necessitassem do nosso apoio, eles vão fazer uma ligação solicitando nosso apoio, explicando como está a situação”, contou.
Perícia prejudicada sem corpo no local
Segundo o perito criminal aposentado Cássio Thyone Almeida de Rosa, integrante do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a ausência do corpo no local prejudica substancialmente a perícia.
“O único laudo em que o perito monta a dinâmica é quando o corpo está no local. Se o corpo não está no local, nem isso o perito vai fazer. Por quê? Com o corpo no local, ele consegue analisar várias questões”, diz.
Com o corpo na cena é possível, segundo o perito:
- Cruzar informações entre as lesões que o corpo apresenta e elementos de disparos de arma de fogo;
- Trajetória: se um corpo é transfixado por um projétil, há uma lesão na entrada e na saída. Na continuidade da trajetória, pode haver outro vestígio, como uma marca de impacto em uma parede, um orifício em um vidro, uma janela, etc;
- A dinâmica do crime: se a pessoa estava em pé ou sentada, por exemplo;
- Distância: também é possível ver, conjuntamente com as lesões no corpo, se foi um tiro de curta distância, longa, etc;
- Se há duas linhas de tiro opostas, o que poderia indicar um confronto.
Segundo Thyone, sem o cadáver, o laudo pericial não vai conseguir apontar se houve execução sumária ou um confronto com policiais, conhecida pela sigla MDIP (Morte Decorrente de Intervenção Policial), registrada nos boletins de ocorrência.
“Ninguém duvida que seja um homicídio. Tem dúvida se realmente foi um confronto ou se não houve confronto. O Código de Processo Penal coloca que é preciso haver perícia, desde que haja vestígio. Então, quanto mais vestígio você tem no local, mais o perito consegue se manifestar em cima de uma dinâmica”, disse.
Rodnei deixou filho de 4 anos — Foto: Arquivo pessoal
Boletim de ocorrência x declaração de óbito
Um dos casos em que o boletim de ocorrência traz essa remoção da vítima do local dos fatos ao hospital é o de Rodnei da Silva Sousa, de 28 anos, morto em 4 de fevereiro durante a Operação Verão. Ele não tinha passagem pela polícia.
Na descrição da Rota no boletim de ocorrência, policiais disseram que ele “apresentava sinais vitais”, mesmo depois de ter sido baleado por tiros de fuzil feitos pela tropa.
Os policiais militares alegaram que atiraram sete vezes na direção do carro em que Rodnei estava porque ele apontou uma arma quando foi abordado no Morro São Bento, em Santos.
Na madrugada do dia seguinte, a morte de Rodnei foi confirmada pelo Hospital Santa Casa de Santos, para onde ele foi levado na ambulância do Corpo de Bombeiros, segundo o boletim de ocorrência. Mas há uma divergência porque não é isso que indica a declaração de óbito assinada por um médico do IML. O documento informa que a vítima morreu no local em que foi baleada, na Avenida São Cristóvão. A declaração também diz, diferentemente do BO, que ele não recebeu assistência médica.
Declaração de óbito de Rodnei Sousa informa que ele morreu na via pública e não no hospital, como polícia relatou no boletim de ocorrência — Foto: Reprodução
Boletim de ocorrência feito pela polícia informa que Rodnei Sousa foi encaminhado com vida ao hospital. Mas informação difere do que está na declaração de óbito dele, de que faleceu no local onde foi baleado pela PM — Foto: Reprodução
Familiares disseram ao g1 que tiveram informações de que Rodnei foi levado morto para o hospital e depois reconheceram seu corpo no IML de Praia Grande, outra cidade da Baixada.
“Morreu no local [onde tomou os tiros]. Nos documentos para os familiares diz que ele morreu em via pública”, contou uma parente de Rodnei, que nega que ele andasse armado.
“Ele foi executado. Foi uma abordagem já para executar ele, já para matar ele, pelo fato de tanto de tiro também que ele tinha.”
“Ele tava com tiro de fuzil na cabeça”, comentou. “Quando os familiares foram providenciar o enterro e tudo, a gente viu que os pés deles estava quebrado, entortado para trás. Então, com algo assustador assim, a gente não sabe o que tá acontecendo de verdade.”
O relatório da Ouvidoria da Polícia de São Paulo sobre a Operação Verão, entregue na semana passada ao Ministério Público, também indica sinais de execução no caso de Rodnei.
A principal evidência, segundo o relatório da Ouvidoria, está no depoimento do motorista do aplicativo que dirigia o carro. Segundo a Ouvidoria, o motorista afirmou que Rodnei estava desarmado.
Testemunhas do assassinato mostraram ao g1 um vídeo que, segundo elas, mostra o momento após a abordagem da Rota ao carro em que Rodnei foi baleado (veja acima).
Além do caso de Rodnei, há um laudo da Santa Casa de Santos que indica que outra vítima da operação já estava em parada cardiorrespiratória havia 20 minutos quando chegou ao hospital.
Também há denúncias da presença de policiais militares durante a necropsia de mortos durante a operação e em enterros.
Documento (no destaque em vermelho feito pela reportagem) mostra que baleado estava há 20 minutos sem sinais vitais — Foto: Reprodução
Pedido à ONU para encerrar operação
De acordo com o documento enviado à ONU, há “indícios da não preservação das cenas dos crimes, bem como a repetição da versão policial em todas as ocorrências com morte: que os suspeitos portavam drogas, atiraram e que teriam sido socorridos ainda com vida. Nesse contexto, a ausência de corpos nas cenas de crimes impossibilitaria que a perícia coletasse provas técnicas”.
A Operação Verão acontece todos os anos nas cidades litorâneas paulistas para prevenir a criminalidade durante os meses em que as praias da região ficam lotadas de turistas. Desta vez, começou em 18 de dezembro.
Até março, a polícia prendeu 825 pessoas e apreendeu 580 quilos de drogas, números semelhantes aos que ocorreram em 2023, 2022 e 2021. Diferentemente dos anos anteriores da operação, em que ninguém morreu, desta vez, 39 pessoas foram mortas.
Não há previsão de a Operação Verão acabar.
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