Ao seu redor, vastas extensões de lama e rocha — cobertas, nos últimos três quartos de século, por metros de água — foram expostas ao Sol. Uma barcaça de grãos enorme repousa sobre um banco de areia próximo. Cobras d’água e sapos rastejam pela água cada vez mais rasa, como se estivessem em busca de sombra.
Duas semanas depois que uma suposta operação de sabotagem russa destruiu a represa que retinha as águas do Rio Dnipro para formar o reservatório Kakhovka, cerca de 18 quilômetros cúbicos de água — o suficiente para encher uma piscina inflável do tamanho da Inglaterra — desapareceram no Mar Negro.
“É uma catástrofe. Foi tudo levado pela água. Veados, porcos selvagens, peixes e tantas espécies ameaçadas. Cerca de meio milhão de pessoas estão agora sem água”, afirma Anatolii Derkach, de 37 anos, secretário do conselho municipal de Marhanets, na margem oeste do antigo reservatório.
Do seu escritório no quarto andar, Derkach observa pela janela as rachaduras na lama cinzenta, olhando em direção à silhueta da maior usina nuclear da Europa na margem leste.
A usina de Zaporizhzhia, com seus seis reatores, está atualmente sob ocupação russa. Com o fim da água, a usina — localizada a cerca de 10 km de distância — de repente parece muito mais próxima.
“Eles dizem que vai ter água suficiente em seus reservatórios por cerca de seis meses. Mas não podemos ter certeza”, diz ele com um suspiro, seguido pela inevitável palavra de alerta “Chernobyl”, uma referência à usina nuclear cujo reator explodiu em 1986 na Ucrânia soviética, causando o pior acidente nuclear de todos os tempos.
Moradores fazem fila para ter acesso a água em Marhanets, cidade ucraniana que frequentemente é alvo de ataques russos — Foto: BBC
Enquanto isso, Marhanets, uma pequena cidade situada em uma colina com vista para o reservatório, é frequentemente alvo da artilharia russa.
“Eles nos observam com drones. Se virem mais de cinco pessoas em um lugar, começam a bombardear”, conta Derkach.
Mas com o esvaziamento do reservatório e o corte no abastecimento de água, o município foi obrigado a instalar pontos de distribuição temporários pela cidade.
“Como você acha que eu me sinto? Ando por aí como um burro de carga, obrigada a carregar água”, afirma Iuliia, uma aposentada que aguarda em uma fila com mais de 20 pessoas ao lado de uma série de torneiras e um grande tanque de plástico no centro da cidade.
“Não é nem sequer água potável. Estou com medo do futuro. Não vejo saída para isso”, acrescenta sua vizinha, Nina, de 70 anos.
Marhanets e outras cidades próximas estão elaborando planos para cavar novos canais para conectá-los a outros reservatórios. Mas muitos moradores partiram, e minas locais e outras indústrias foram forçadas a fechar. Os agricultores locais agora estão tentando acessar poços antigos e pequenos riachos para encontrar fontes alternativas de água.
“Não sei o que [os russos] estavam pensando — para fazer isso. O meio ambiente vai sofrer e vai ser difícil para todos nós”, diz Ivan Zaruski, de 56 anos, fazendo uma breve pausa enquanto carrega uma carreta com fardos de palha junto a um grupo de parentes e vizinhos em um campo fora da cidade.
“O mais importante é que a usina nuclear não exploda. Mas vamos sobreviver a tudo isso. Não temos para onde ir, então não temos escolha”, ele acrescenta com um sorriso.
Moscou diz que não teve nada a ver com a destruição da represa Kakhovka no território ocupado pela Rússia — e acusou a Ucrânia de disparar mísseis contra a mesma.
Irina (à direita), ao lado do marido, Evhenii, disse que a água atingiu o telhado da pequena casa do casal, perto do Rio Dnipro — Foto: BBC
Enquanto isso, mais ao sul, abaixo da represa destruída, o nível da água das inundações que devastaram, sem aviso prévio, a cidade portuária de Kherson e vilarejos menores matando dezenas de pessoas e forçando milhares a fugir, baixou bastante.
“Somos como ratos — podemos sobreviver a qualquer coisa”, diz Irina, uma professora aposentada de 73 anos, enquanto ela e o marido, Evhenii, arrastam lentamente para fora os móveis encharcados da casa do casal.
A certa altura, as águas da enchente atingiram o telhado da moradia, localizada na Rua Tchaikovsky, perto do Rio Dnipro, no centro de Kherson. Mas agora há apenas algumas poças grandes do lado de fora, ao lado de vários pequenos barcos que haviam sido usados durante a enchente.
“Pelo menos isso aconteceu no início do verão. Ainda temos tempo para secar as coisas”, observa Evhenii, empilhando alguns móveis podres e fedorentos no quintal.
Mais cedo naquela manhã, vários projéteis de artilharia russa atingiram o centro de Kherson, e muitos outros cairiam neste bairro nas próximas horas e dias, disparados de posições russas na margem oposta do rio. As tropas ucranianas estavam impedindo que os carros chegassem muito perto do rio, e grande parte da cidade parecia deserta.
“Hoje foi maravilhoso”, afirma Oksana, que foi ajudar os pais idosos na limpeza após a enchente na Rua Tchaikovsky. Ela se referia às notícias sobre a contraofensiva da Ucrânia.
“Nossos homens estão fazendo um ótimo trabalho. Podemos dizer quem está atirando aonde. Eles tiveram grandes êxitos contra as posições russas — e atingiram alguns depósitos de munição grandes. Só queria que tudo isso estivesse acontecendo um pouco mais rápido”, diz ela.
Perto dali, seu pai de 78 anos, Vladimir, desaba em uma cadeira. Ele estava ajoelhado, com um machado, para retirar partes encharcadas de um velho armário, mas se levantou rápido demais.
“Ele nasceu aqui. Passou a vida toda aqui. A maioria das pessoas que ficaram neste bairro são idosas. Elas não vão a lugar nenhum”, observa Oksana.
Publicar comentários (0)