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Muito além do Kestrel

today13 de julho de 2023 5

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Ainda que os tripulantes não tenham se machucado, o grande navio encalhou ficando totalmente “inutilizado”, como descreveu à época o jornal Santos Commercial.

“(…) E a barca, em cujo bordo não se achava o capitão, piloto ou contra mestre sequer, continuava a garrar até que às 8 horas e meia da noite estava completamente encalhada na praia, em lugar tão próximo da terra que se pode ir a seu bordo a pé, pois não a cerca altura maior do que dois palmos d’água. (…)

A bordo estavam só três pessoas da tripulação: o cozinheiro, o despenseiro e um marinheiro que absolutamente nada podiam fazer para salvar o navio e estamos mesmo em dúvida se procederam mal não aceitando o socorro logo em princípio oferecido pelo (rebocador) Rápido.”



Cento e vinte e quatro anos depois, equipes de limpeza da Prefeitura Municipal se depararam com destroços na areia da praia do Embaré, ao lado do Canal 5. Restos de madeira surgiram em um dia de maré baixa e rapidamente chamaram a atenção de curiosos e da imprensa.

O Ministério Público interviu e definiu que a Prefeitura Municipal teria que tomar conta para que aqueles destroços não fossem alvo de curiosos ou vândalos e uma empresa de arqueologia seria a então responsável técnica por responder a pergunta: afinal, o que seria aquilo? Após uma minuciosa e intensa pesquisa que durou seis meses, a equipe do Centro Regional de Pesquisas Arqueológicas, da Fundação Gonzalez, comprovou que aqueles destroços se tratavam da embarcação inglesa Kestrel, cujo encalhe foi narrado acima.

Kestrel - 2023

Kestrel – 2023

Manoel Mateus Bueno Gonzalez é formado em Biologia (PUC), Veterinária (Unimonte) e tem doutorado (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP) e pós-doutorado em Arqueologia no Museu de História Natural em Paris.

Dentro da biologia, Manoel tinha um interesse muito específico pelos animais cartilaginosos, como tubarões, raias e quimeras, e se especializou em zoologia. O curso de veterinária, ele fez para ser uma sequência nos seus estudos desses animais. Na Arqueologia ele se especializou em Zooarqueologia, ou seja, o estudo dos animais dentro dos sítios arqueológicos.

“Aqui na Baixada Santista temos os sambaquis, que são sítios pré-históricos de 5 mil anos atrás. Minha tese foi justamente sobre como os grupos de caçadores e coletores utilizavam tubarões e raias não apenas para alimentação, mas seus dentes para fazer utensílios como lanças, flechas e a parte ritualística com animais marinhos. Encontramos muitos artefatos associados aos sepultamentos desses animais, não só tubarões, raias, mas baleias também”, explica o estudioso.

Foi pensando na preservação tanto desses animais como nos sítios arqueológicos que Manoel criou há 30 anos o NUPEC, Núcleo de Pesquisa e Estudo em Chondrichthyes e 10 anos depois o CERPA.

Como pesquisador, Manoel já teve a maior coleção particular de tubarões e raias do Brasil. “Quando entrei na parte da arqueologia, senti que esse material deveria ficar em um museu e foi aí que fiz a doação de mais de 5 mil animais ao Museu Oceanográfico de Itajaí”, conta.

Arqueologia de contrato e acadêmica

No CERPA Manoel conta com uma equipe formada por profissionais de diversas áreas como biologia, arqueologia, geologia e geografia. É engraçado pensar isso, mas o licenciamento ambiental não diz respeito apenas ao impacto ambiental que as obras causarão em um determinado local. Justamente porque a ilha de São Vicente faz parte do berço da colonização brasileira, por aqui existem diversos sítios arqueológicos – muitos datam antes disso, claro.

“Durante seus 20 anos de existência, o CERPA fez um trabalho enorme. Criamos um mapa com mais de 40 sítios arqueológicos só na cidade de Santos e, com essas informações, criamos um mapa onde conseguimos identificar lugares com maior ou menor probabilidade de encontrar sítios arqueológicos. Isso é muito importante para os órgãos fiscalizadores, para conseguirem fazer as licenças necessárias para início das obras na nossa cidade”, explica Gonzalez.

“Fizemos várias pesquisas na área da arqueologia na linha do bonde, Teatro Guarany, Casa do Trem Bélico, Engenho dos Erasmos. Temos cerca de 200 mil artefatos arqueológicos no CERPA e, em breve, criaremos um museu para expor essas peças para a população”.

Sendo assim, o pesquisador explica que existem dois tipos de “arqueologias”: a de contrato, quando a empresa de arqueologia – e aí pode ser qualquer uma no país – é contratada para fazer um estudo para um licenciamento de uma obra; e a acadêmica, cujo objetivo é estritamente acadêmico.

Mergulhador durante identificação de estrada subaquática pré-histórica. — Foto: Divulgação

Porto das Naus e outros navios

Dentro da arqueologia, Manoel realizou diversos trabalhos, entre eles a arqueologia subaquática. Basta imaginar que, quando falamos do Porto de Santos – esse que a gente conhece hoje – talvez não fique claro para o leitor que estamos falando de algo que surgiu em 1892 e, portanto, não é de se estranhar que existam por aqui navios encalhados e submersos.

Na verdade, essa é uma realidade com a qual os terminais portuários cada vez maiores e mais modernos devem lidar quando necessitam ampliar ou melhorar suas instalações – para fazer qualquer obra é necessário o licenciamento e, dentro desse estudo, surge a necessidade de contratação de uma equipe para realizar a arqueologia subaquática.

Sítio arqueológico Porto das Naus. — Foto: Divulgação

Foi em um desses trabalhos que, em 2012, a equipe do CERPA encontrou seu primeiro navio. “Nesse nosso trabalho de arqueologia de contrato encontramos alguns naufrágios, o primeiro foi uma embarcação de aço que está localizada no canal do porto de Santos. Foi uma grande surpresa. Estávamos trabalhando para um terminal portuário, passamos o sonar de varredura, uma técnica não interventiva que capta tudo o que está no fundo do canal do Porto de Santos, e encontramos!”, conta.

O segundo navio que encontraram foi um navio de 50 metros de comprimento por 12 de largura (quase as mesmas dimensões do Kestrel). “Encontramos em 2014 no Canal do Porto de Santos. Temos 90% de certeza de que se trata do Cazador, navio que naufragou em 1828. Depois que acaba o serviço para o terminal, aí entra a pesquisa acadêmica que segue em cima desses dois navios para possamos fazer a identificação correta e estarmos 100% corretos”.

Sidescan do Cazador mostra estrutura completa do navio. — Foto: Divulgação

Aqui na ilha de São Vicente temos o primeiro “Porto do Brasil”, ou o primeiro trapiche alfandegário do Brasil, o Porto das Naus, que data de 1510. O CERPA realizou um trabalho para identificação do Porto das Naus e acabou descobrindo vestígios de uma construção posterior, o Engenho do Gerônimo Leitão.

“Encontramos todas as estruturas lá e tínhamos uma curiosidade de saber se tinha embarcação naufragada próximo dali. Resultado: talvez tenhamos encontrado a embarcação mais antiga encalhada na nossa região. Ela é de madeira e conseguimos identificar alguns canhões junto a estrutura naufragada” explica animado. Para se ter uma ideia, as embarcações citadas até o momento datam de 100 a 150 anos atrás. Essa embarcação tem mais de 200 anos.

Também foram encontrados mais dois navios naufragados fora do canal do Porto de Santos e outros dois encontrados por outras equipes de arqueologia – O Vérnia e o Carioca – e que hoje estão sendo estudados pelo CERPA. “Esses navios que encontramos já estão mapeados e registrados no IPHAN”.

QUADRO NAVIOS ENCONTRADOS E QUE NAUFRAGARAM AQUI

ENCONTRADOS E COM DESTROÇOS

  • Recreio 1971 – encontrado 1971
  • Carioca 1859 – encontrado 2010
  • Vernia 1957 – encontrado 2010
  • Não identificado – encontrado 2012
  • Porto das Naus – encontrado 2014
  • Cazador 1828 – encontrado 2014
  • Kestrel 1895 – encontrado 2017

NOVOS REGISTROS – BIBLIOGRAFIA

  • SV Alvin Kelley (+1891)
  • SV Crusader (+1892)
  • SV Jafet II (+1892)
  • SV Nellie T. Guest (+1892)
  • Caldbeck (+1894)
  • SS Madonna della Costa (+1894)

Voltamos então para 2017. Após a descoberta dos destroços na areia da praia, o Ministério Público determinou que o CERPA ficaria responsável pela pesquisa e a Prefeitura Municipal pela manutenção e preservação da área.

“Ninguém tropeça num sítio arqueológico nem vamos a um local à pedido de uma empresa com a certeza de que ali terá alguma coisa, mesmo tendo uma lista de navios que encalharam aqui na região, nós vamos às cegas. No caso do Kestrel, foi diferente”, conta Manoel Gonzalez.

De acordo com o pesquisador, o aparecimento do Kestrel deve ter relação com o aprofundamento do canal do Porto por meio da dragagem. “Houve toda uma mudança de marés, retrabalhamento da areia que aconteceu depois da dragagem de aprofundamento do Canal do Porto e que modificou a circulação de água na Bacia de Santos. A areia na praia aqui diminuiu e a do Góes (em Guarujá) aumentou, por exemplo. E nesse retrabalhamento de areia apareceu o Kestrel. Ninguém estava procurando, estava enterrado ali há mais de 100 anos. Foi algo inusitado e, a partir do aparecimento dele, começamos toda a pesquisa acadêmica”, conta.

No início era possível ver apenas 10 centímetros da estrutura da embarcação. Hoje, já estão visíveis 50 ou 60 centímetros do navio. Por esse motivo, o Ministério Público determinou que, enquanto o CERPA ficava responsável pela pesquisa, a Prefeitura deveria preservar o patrimônio.

Depois de seis meses de pesquisa – não apenas bibliográfica, mas in loco, com trabalho de campo não interventivo, foi possível a identificação do navio. “Fizemos um raio x do navio e também fizemos a pesquisa em registros antigos da Lloyd, uma seguradora de navios da época que, até hoje, tem os registros de todos os navios que passaram por aqui, os que encalharam, sumiram ou foram a pico. Tudo registrado, inclusive informações como comprimento, largura e o ano que foi construído”, explica Gonzalez.

Outro recurso para se chegar na identidade dos navios naufragados é recorrer aos jornais da época. “O acidente do Kestrel foi amplamente divulgado na imprensa, com uma cobertura de três dias seguidos falando só sobre o encalhe. E no jornal aponta exatamente onde encalhou, dá referências geográficas”.

Março, de 2023. Seis anos após a descoberta do Kestrel, os destroços do navio continuam no mesmo lugar, na praia do Embaré, ao lado do canal 5. A cada seis ou 12 horas entram em contato com o sol, e recebem o impacto da maré. Apesar dos esforços da Prefeitura em manter a área intacta, que incluem um isolamento por cordas e uma câmera 24 horas voltada para o local, é inevitável que desavisados ou curiosos mexam nos destroços e até levem um pedacinho do antigo navio como souvenir.

“O melhor seria retirá-lo do local. Onde ele está hoje vai se deteriorar e vamos acabar perdendo muita informação sobre o Kestrel”, conclui o pesquisador e explica. “Existem dois locais que preservam o material arqueológico perfeitamente: embaixo d’água ou no deserto. No mundo inteiro você tem museus com embarcações muito mais antigas, que foram retiradas do mar, da água doce, trabalhadas quimicamente. Mas como isso nunca foi feito aqui no Brasil, as pessoas não entendem ou não sabem, mas existe um trabalho de desidratação, dessalinização. Será necessário fazer um processo de escavação, drenar a água do local, retirar por pedaços, fazer o processo químico e remontá-lo”. Para o pesquisador, o melhor lugar para expor é um museu.

Museu Náutico Escolástica Rosa

O NUPEC é locatário desde 2021 do imóvel do Escolástica Rosa. Pelo contrato feito com a Santa Casa de Misericórdia de Santos, proprietária do imóvel, o NUPEC deverá conduzir, estruturar e desenvolver a recuperação do imóvel, prospectar recursos para essa finalidade e fazer a manutenção de todo o complexo após a conclusão das obras. Em contrapartida poderá implantar e explorar atividades culturais, artísticas educacionais e comerciais, devendo pagar parte das receitas à Santa Casa. O contrato é válido por 15 anos, renováveis por outros 15.

Segundo o projeto, assinado pelo arquiteto e restaurador Gustavo Nunes, da empresa To Fix, estão previstos ambientes diversos ambientes para convivência, educação ambiental, escola de artes, escola de músicas, salas administrativas e museus. “Queremos criar um museu náutico para grandes estruturas, levar esse registro para a população, inclusive do Navio Recreio, que encalhou na década de 1970. Não adianta guardar esse conhecimento, o que queremos é, de uma forma correta e coerente, divulgar e dividir com a população essa riqueza que temos na nossa cidade”, explica Gonzalez. Além do museu náutico, ele prevê também a exposição das mais de 200 mil peças arqueológicas encontradas nas escavações em espaços históricos.

O projeto já está aprovado pela Prefeitura de Santos, com sinal verde do Condepasa e do Condephaat, os órgãos responsáveis pelo tombamento em níveis municipal e estadual, respectivamente. O Plano Santa Saúde é um dos patrocinadores do projeto de restauro e o projeto também pode se beneficiar das renúncias fiscais previstas nas leis de incentivo governamentais, mas ainda é necessário que mais empresas participem para que seja possível chegar no valor total do projeto, estimado em R$ 50 milhões. Para isso, basta entrar em contato pelo site www.nupec.com.br.




Todos os créditos desta notícia pertecem a G1 Santos.

Por: G1

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