Naquele dia, o arcebispo da cidade, Dom Ricardo Tobón Restrepo, publicou nas redes sociais uma lista com os nomes de 36 sacerdotes que haviam sido denunciados perante a arquidiocese nos últimos 30 anos.
A publicação ocorreu depois que o Supremo Tribunal de Justiça do país decidiu em favor do jornalista colombiano Juan Pablo Barrientos e exigiu que a Igreja Católica entregasse os dados por considerá-los de interesse público.
Barrientos investigou durante anos denúncias de pedofilia na Igreja Católica colombiana.
Na lista divulgada pela arquidiocese, consta o nome de um padre acusado por Natalia Restrepo.
O que se segue é o depoimento em primeira pessoa da mulher, acompanhado do contexto de seu caso coletado pela BBC Mundo.
Meu nome é Natalia, tenho 32 anos e acabo de embarcar na jornada mais importante da minha vida.
Voltei a Medellín com minha filha, duas malas e o firme propósito de quebrar meu silêncio. De denunciar, mais uma vez e de todas as formas possíveis, o padre que me estuprou e me obrigou a fazer um aborto em 2004, quando eu tinha 14 anos.
Essa é uma viagem ao meu passado, à história mais dolorosa que já vivi e que nem a minha família conhece a fundo.
Embora eu já tenha voltado várias vezes para a casa onde cresci, agora é diferente.
É a primeira vez que volto para tentar falar com minha avó sobre o que aconteceu comigo. Ele já tem 90 anos e, embora tenha perdido a visão, seu caráter ainda é forte.
Minha avó tem sido minha mãe e meu pai, porque eles não puderam ou não quiseram cuidar de mim.
Eu nunca tive um relacionamento com meu pai. Minha mãe, por outro lado, mandava dinheiro para meu sustento dos Estados Unidos, onde reconstruiu sua vida e construiu outra família.
Nunca senti falta de nada material. Eu gostava da minha mãe em tudo e ela sempre esteve em contato comigo, mas nunca moramos juntas.
Por isso minha grande carência na vida, até hoje, tem sido afetiva. É um vazio que, não de forma consciente, tentei preencher com a religião.
Minha avó me levava à missa aos sábados e domingos, e durante a semana, se fosse possível e passássemos pelo parque, também tínhamos de entrar na igreja.
É algo que ela continua a fazer de forma sagrada até hoje.
Falar sobre o que aconteceu comigo não é fácil, mas consegui fazer algumas perguntas a ela:
– Mãezinha, você se lembra dos padres?
– Sim, eu confiei neles porque eles me fizeram acreditar que cuidavam bastante de você.
– Você se lembra que tinha um padre que sempre ligava para você para pedir sua permissão para mim?
– Sim. sempre. Eu dizia a ele para ter muito cuidado.
2. Paróquia de Santa Gertrudes, a Grande
Tudo começou na paróquia que fica na praça principal de Envigado, município da região metropolitana de Medellín. É uma igreja grande e bonita. Me parece que não mudou com os anos.
Quando eu era criança, gostava de ver as crianças e jovens no altar ajudando o padre durante a missa.
Admirava-os com suas túnicas brancas e dizia à minha avó que queria ser como eles.
Assim que completei 11 anos, idade mínima exigida, inscrevi-me no curso para ser coroinha (ou acólita, como chamamos na Colômbia). Um ano depois, me consagrei e comecei a auxiliar os padres da paróquia.
Envigado é um lugar muito católico e conservador, por isso era motivo de orgulho para as famílias que seu filho ou filha estivesse na igreja, que participassem da Eucaristia [celebração da Igreja Católica para lembrar a morte e ressurreição de Jesus Cristo] e das procissões da Semana Santa.
Eu também fazia parte dos grupos de infância missionária, então passava muitas horas lá.
Foi nesse contexto que conheci um seminarista que sempre ia à missa aos domingos, ficava no altar e nos fazia cantar e aplaudir.
Ele era carismático, conhecido por sua boa voz e por tocar violão. Ele chamava a atenção porque as missas eram mais chatas, mas o que ele fazia era bacana para os paroquianos.
Além disso, foi ex-aluno do Liceu Francisco Restrepo Molina, o mesmo onde estudei.
Por volta de 2002, foi ordenado padre e destinado a essa mesma paróquia de Santa Gertrude.
Foi no mesmo ano que me tornei acólita, então compartilhei muito com ele. Às vezes, ele me pedia para ajudá-lo com o computador ou para fazer algum cartaz.
Eu me sentia especial. Ele me tratava como alguém importante, porque minha caligrafia era linda e os cartazes ficavam muito bonitos. Ele me fez sentir levada em conta.
Com o tempo, comecei a me tornar sua preferida. Acompanhava-o às missas fora da paróquia ou a alguma unção a um enfermo.
Íamos no carro dele e, quando voltávamos, ele sempre me deixava em casa.
Em um sábado, depois da reunião do grupo de jovens, o padre me pediu para acompanhá-lo a uma Eucaristia em um clube em um bairro nobre de Medellín.
De lá, ele me levou a Sabaneta, município próximo a Envigado, para um restaurante ao ar livre onde vendiam carne assada.
Ficamos lá por cerca de uma hora, comendo e bebendo algo.
Então, entramos no carro, mas dessa vez ele não me levou para minha casa — e sim para um motel, que ainda existe.
“Padre, por que você está me trazendo aqui?”, perguntei a ele.
“Para que possamos nos servir de mais alguma coisa e não nos vejam, porque talvez um padre bebendo seja feio”, respondeu.
Fiquei tranquila porque era comum ele beber. Além disso, eu confiava nele. Eu o conhecia há muito tempo e ele nunca tinha feito nada comigo.
Lembro que os quartos eram como cabanas com estacionamento próprio.
Ele bebeu muito, foi longe demais e começou a tentar tirar minha roupa. Eu não entendi muito bem o que estava acontecendo. Eu me senti confusa.
Eu nunca tive aulas de educação sexual e falar de sexo com minha avó era um tabu .
“Deixa eu te dar uns beijos. Sempre fui apaixonado por você. Você é uma mulher linda. Quero que seja minha”, dizia o padre.
Eu pedia para ele parar, mas ele não ligava. Foi quando comecei a sentir muito medo.
Comecei a bater na porta que dava para a garagem para alguém me ajudar, mas ele me disse que ninguém ia ouvir, que a recepção era longe dali.
O que ocorreu depois é a lembrança mais nojenta que tenho: ele tirou a calça, a camisa, me jogou na cama, abriu minhas pernas e se forçou contra mim.
Essa imagem ficou comigo e acho que é o momento que gera mais ódio em mim.
Agora que sou adulta, entendo que, como eu estava indisposta, demorou um pouco para chegar ao clímax. Mas naquele momento, não entendi nada, apenas me pareceu eterno.
Eu estava gritando porque doía. Eu era adolescente e ele estava tirando minha virgindade.
Quando — não sei como — consegui me libertar, comecei a chorar.
Eu chorava muito, muito, mas ele não se importava. Ele disse que eu era dele, que sempre seria dele.
Não contei a ninguém o que aconteceu porque, no fundo, sabia que não iriam acreditar em mim.
Em Medellín, quando algo de ruim acontece a alguém, costuma-se dizer um ditado: “Nem se ele tivesse matado um padre [alguém mereceria isso]”.
E eu, que era uma adolescente de 14 anos, como ia enfrentar um? Quem iria acreditar que aquele homem respeitado em Envigado tinha feito algo tão terrível para mim?
Logo após o estupro, houve outro episódio de abuso, desta vez na casa sacerdotal onde o padre morava na época.
Uma vez, ele me levou para um quarto e começou a se masturbar. Ele pedia para eu olhar para ele.
Talvez os abusos continuassem, mas aconteceu algo que mudou tudo: parei de menstruar.
Eu tinha uma menstruação regular, então sabia que aquilo não era normal.
Resolvi contar a uma amiga, sem lhe dar detalhes do que havia acontecido comigo.
Ela sugeriu que eu fizesse um exame de (gravidez) de urina, mas o resultado não foi claro, então busquei um laboratório para fazer um exame de sangue.
Eu estava a caminho quando encontrei Dona Lucía [nome alterado por respeito à sua privacidade], uma catequista da paróquia.
Eu estava nervosa, mas confiei nela e contei tudo.
Ela respondeu: “Como isso pode ter acontecido? Você sempre foi muito próxima dos padres… Eu pensei que talvez não fosse tão bom você ser tão próxima deles…”
Fiz o teste em Envigado. O resultado foi positivo.
Quando soube do resultado, fui à paróquia e disse ao padre que precisava falar com ele.
Ele me encontrou em um lugar onde vendiam sorvete.
Lá, eu disse que estava grávida. Ele ficou com raiva e me disse que eu não iria prejudicar sua vocação, que ele estava apenas começando sua vida sacerdotal.
“Como posso não te atrapalhar se você esteve comigo? O que vou fazer?”, perguntei.
Ele me disse para não me preocupar, que ele iria dar um jeito na situação.
Ele me levou a uma senhora em um bairro popular. Eles primeiro conversaram e depois ela fez um exame vaginal. A senhora disse que não havia nada que ela pudesse fazer.
Acho que ela quis dizer que era muito cedo para inserir um espéculo, porque o feto era muito pequeno.
Então, fomos a uma farmácia. No balcão, vi que o padre passou dinheiro para o vendedor, e este me deu comprimidos, explicou como tomá-los e avisou que eu ia sentir muita dor.
O padre me disse que, com aquilo, eu iria menstruar. Ele nunca falou em aborto [que, no caso, foi ilegal].
Fugi do assunto por vários dias porque estava com medo. Mas ele me ligava para me pressionar. Ele gritava comigo e me manipulou muito.
Até que eu usei os comprimidos.
Na madrugada, comecei a expelir coágulos de sangue. Foi muito forte. A dor era horrível. Eu vomitava muito sangue.
Alguns dias depois, o desconforto continuou e decidi ir à clínica.
Lá, eles tiveram que fazer uma curetagem, uma intervenção para limpar o resíduo que ainda estava no meu corpo depois do aborto.
Mas eu não pude fazer isso em segredo, como eu queria. Uma das enfermeiras conhecia um parente meu e contou para ele.
Ele veio para a clínica furioso. Ele disse coisas ofensivas para mim: “Como você engravidou e fez um aborto? Sabe-se lá de quem você engravidou!”
Quando cheguei em casa, minha avó já sabia. Ele havia contado a ela, mas eu neguei. Eu disse que tinha ido clínica por outro motivo.
Ficou por aquilo mesmo. Não voltamos a falar sobre aquele dia até agora, quando voltei e perguntei se ela se lembrava daquele episódio.
– Mamãe, o que você lembra daquela época que eu fui para a clínica?
– Naquele momento, não me dei conta, porque você disse que era só uma cólica.
– E você lembra o que aconteceu daquela vez que fiquei até tarde com o padre?
– Bem, foi depois que você contou que ele tinha… e que ele tinha te feito abortar.
Minha avó nunca foi capaz de dizer a palavra “estupro” em nossa conversa. Não me surpreendeu porque eu mesma, sendo muito mais jovem, também tinha dificuldade em dizê-la.
O que ela sim me disse é que passou a ter muito rancor daquele padre.
“Uma vez fui confessar porque tinha muito ressentimento com aquele padre, pela confiança que havia depositado nele. Eu não queria receber a comunhão dele”, disse minha avó.
Vários anos se passaram até que tivesse coragem de apresentar uma queixa à Arquidiocese de Medellín.
Tive dificuldade em decidir isso. Eu sabia que a Igreja Católica tem muito poder e que eu enfrentaria algo muito grande.
Além disso, naquela época, eu me sentia culpada por ter abortado. Eu estava confusa e pensava que havia feito um pecado muito grave.
Lembro que fui atendida por um padre que fazia anotações em um livro, à mão. Quando terminei, ele me deu um tapinha no ombro e disse que eu tinha que perdoar, “que eles [padres] são homens e também erram”.
Não aconteceu nada. Nunca mais me contataram.
Voltei recentemente e perguntei o que aconteceu com minha primeira queixa. Eles tampouco me deram uma resposta. A senhora que me atendeu pediu meus dados e disse que iria verificar os arquivos e entraria em contato comigo, mas não o fez.
Então resolvi registrar uma queixa pela segunda vez.
No dia 30 de agosto de 2022, o bispo auxiliar, monsenhor José Mauricio Vélez García, me atendeu.
Enquanto ele me ouvia, anotava tudo no computador e lia em voz alta para que eu soubesse o que estava sendo registrado. No final, assinei um documento com a minha declaração.
Perguntei a ele o que ele pensava.
– É uma queixa muito grave. Deve ser assumida com toda a responsabilidade e rigor – respondeu.
Ele acrescentou que não fazia ideia das minhas queixas anteriores.
– Era outra época, outra realidade.
Depois do aborto, me afastei da Igreja e tentei seguir em frente com minha vida.
Eu mesma paguei meus estudos técnicos em farmácia, mas não me sentia bem. Eu queria ir embora, para onde ninguém me conhecesse.
Ouvi várias pessoas falarem sobre o Chile e resolvi ir para aquele país distante e desconhecido para recomeçar.
Saí em 2014, quando tinha 24 anos. Lá conheci meu marido e tive minha filha.
Foi também lá que ouvi pela primeira vez sobre acusações de pedofilia contra padres católicos.
Eles estavam no meio de um grande escândalo revelado por vários homens que, já adultos, denunciaram um padre chamado Fernando Karadima — que abusou deles quando eram menores.
Isso me fez pensar: por que não posso também contar o que me ocorreu, se há outras pessoas que o fizeram depois de anos?
Entendi que nunca era tarde e comecei a investigar.
Fiquei sabendo que o padre que me estuprou ainda é atuante, em uma paróquia de Antioquia.
Esse foi o último impulso que eu precisava para embarcar nessa jornada: voltar ao meu país para fazer denúncias e falar publicamente do meu caso.
Não creio que ele possa passar a vida confessando, oferecendo a Eucaristia e falando de coisas boas, depois de ter feito algo tão sério.
Só quero que ele pague pelo que fez. Mas não com uma suspensão ou castigo temporário. Espero que ele vá para a cadeia pelos crimes que cometeu.
Por esse motivo, em setembro de 2022 também apresentei uma denúncia às autoridades colombianas.
Fiquei um mês e meio em Medellín e fiz todas as atividades [relacionadas ao caso] que pude antes de voltar para a minha casa no Chile.
Depois de toda a adrenalina daquela viagem — visitando lugares, pessoas e apresentando minha denúncia oficial à Justiça —, não tem sido fácil retomar a vida cotidiana.
Na minha casa, embora esteja a minha filha que me ama e me acompanha, também há minha solidão e meus fantasmas.
Ser abusada sexualmente me deixou com uma ferida que não consigo apagar. Isso afetou minha vida emocional e física.
Desfrutar da minha sexualidade tem sido difícil. Estar na situação [sexual] revive o trauma e traz à minha mente imagens horríveis do estupro.
Fecho os olhos, respiro, tento não pensar nisso, mas é como se isso estivesse me seguindo.
Foi muito difícil também quando engravidei da minha filha, porque voltei a me sentir culpada por aquela outra vida que perdi. Penso quantos anos ele teria se tivesse nascido.
Tento progredir, mas sinto raiva porque acredito que não existe justiça no meu país. Não entendo como um padre continua a atuar depois de ter cometido um crime tão grande.
Também não recebi nenhuma resposta da arquidiocese.
Imagino que não vai acontecer nada. Os sacerdotes dão cobertura uns aos outros. Quando há denúncias, no máximo são transferidos para asilos onde supostamente pagam as penas. Ou eles são enviados para cidades pequenas onde ninguém os conhece, e eles continuam atuando.
Sinto raiva e impotência ao pensar que, em Envigado, tudo continua igual.
Não tenho tido boas noites. Não imaginava que tudo isso seria tão difícil emocionalmente, que me daria tanta angústia lembrar e denunciar, mas não queria passar mais anos com isso no peito.
Por isso decidi quebrar meu silêncio.
Este texto e as fotos que o acompanham são minha última parada nesta dolorosa jornada de volta à minha infância e adolescência.
A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) tentou por mais de cinco meses obter informações sobre o caso de Natalia.
Depois de numerosos telefonemas a diferentes funcionários, e-mails e de petições na Justiça, a Arquidiocese de Medellín concordou em responder por escrito às nossas perguntas.
A instituição confirmou a existência das duas denúncias e reconheceu que, na época da primeira, “não havia processo formal que existe hoje” e que, após análise, decidiram arquivar a denúncia “até que se obtenha evidências que nunca obtiveram”.
No entanto, na lista divulgada por Tobón em 2022, o caso aparece “em investigação”.
Sobre a segunda denúncia, a arquidiocese afirmou que abriu uma investigação que está a cargo de dois padres, conforme indica o protocolo a ser seguido pela Igreja Católica desde 2019.
Questionada sobre por que só apresentou a primeira denúncia à Justiça colombiana em 2022, a instituição afirmou que “assinou acordos de colaboração com o Ministério Público nos quais priorizam os casos ocorridos nos últimos três anos e, posteriormente, os ocorridos nos últimos cinco anos”.
Sobre a versão do padre acusado, a assessoria de imprensa da Arquidiocese de Medellín esclareceu que ele era livre para decidir se atendia ou não às solicitações de um meio de comunicação.
Todas as tentativas da BBC News Mundo de obter a versão dele não tiveram sucesso.
A BBC News Mundo também teve que insistir por meses para obter respostas do Ministério Público da Colômbia e precisou novamente de uma ordem judicial para que a instituição respondesse por escrito a perguntas.
O Centro de Atenção Integral à Vítima de Abuso Sexual do Ministério Público confirmou que recebeu a denúncia de Natália.
Sobre a lista divulgada por Tobón, destacou que recebeu da Arquidiocese de Medellín autos onde se presume o cometimento de crimes sexuais por parte de sacerdotes, mas esclareceu que não foram realizadas investigações pela instituição religiosa.
Além disso, a promotoria apontou que cinco dos padres mencionados na lista morreram e 13 foram transferidos para outra unidade mais especializada, incluindo o que Natália denuncia.
Mais cinco estão em processo judicial, três em execução de pena e o restante em investigação
Algum tempo depois de nossa consulta, Natalia Restrepo recebeu um comunicado oficial da promotoria — a que a reportagem teve acesso — informando que seu caso havia prescrito porque os fatos ocorreram há 18 anos. Com isso, a investigação não prosseguiria.
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