O governo local trata dessa dependência como uma epidemia. Nem o encarceramento oferece proteção para os dependentes da droga. O programa de TV Africa Eye, da BBC News, conseguiu ter raro acesso à principal penitenciária do país para retratar uma pequena parte do problema que ameaça dominar as ilhas.
Empoleirada no topo de uma montanha e rodeada por belas vistas do oceano Índico fica a prisão Montagne Posée, a principal unidade prisional das ilhas Seychelles. Este é um país de contrastes, mas, mesmo assim, é difícil conciliar a vista de cartão-postal das praias locais com o que veremos a seguir.
Na entrada do local onde ficam os prisioneiros, depois de passar por diversos portões trancados e quilômetros de cercas de arame farpado, existe um mural de Nelson Mandela de quatro metros de altura pintado no prédio da administração.
Ao lado do rosto sorridente do falecido presidente sul-africano – que foi, ele próprio, um prisioneiro – existe uma citação que diz: “Conta-se que ninguém conhece um país até entrar nas suas cadeias”. De fato, esta prisão, de muitas formas, é um reflexo do que está acontecendo nas Seychelles para além dos seus luxuosos hotéis cinco estrelas.
Estamos aqui para falar com um dos detentos, Jude Jean. Antes, contudo, a equipe da BBC é levada para o que os prisioneiros chamam de “cela modelo” para os visitantes. Ela é limpa, mas apertada. São oito camas, quatro de cada lado – uma em cima da outra, sem espaço para sentar com as costas retas. Na mesma sala, há um banheiro e chuveiro. Privacidade é algo que não existe.
Perto dali ficam as cozinhas, sujas e dilapidadas. Entranhas de peixe entopem as pias e o mau cheiro domina o ambiente. Há muitas moscas.
Em seguida há o pavilhão principal. A escuridão é impressionante. Ainda é início da tarde, mas não há luz do dia. Pequenas lâmpadas em um corredor próximo lançam uma luz fraca.
‘Conta-se que ninguém conhece um país até entrar nas suas cadeias’ (Nelson Mandela). — Foto: BBC
Os prisioneiros usam caixas de papelão para ter alguma privacidade atrás das barras das celas, cuja frente é aberta. Algumas são pequenas e parecem mais gaiolas, com colchões sujos no chão.
O problema da heroína também se esconde na escuridão. Narcóticos potentes fluem através das celas. A prisão não oferece proteção contra o que acontece no lado de fora.
As ilhas Seychelles estão enfrentando uma epidemia. Estima-se que cerca de 10% da população do arquipélago sejam dependentes de heroína. É preciso trazer trabalhadores estrangeiros para fazer o trabalho que os moradores locais não conseguem, devido à dependência da droga.
Na prisão, guardas tanzanianos revezam-se em turnos para tentar impedir a corrupção e o fluxo de heroína para dentro das celas. Mas não está funcionando.
Celas são apertadas e oferecem pouca privacidade. — Foto: BBC
Corrupção, drogas e prisão
O próprio presidente de Seychelles, Wavel Ramkalawan, admite que a prisão não está cumprindo com seus objetivos.
“Quando você tem uma bagunça tão grande, você tem um campo fértil para a corrupção dos funcionários. E, quando você tem corrupção, as drogas continuam a entrar na prisão”, declarou ele à BBC, do palácio do governo na capital do país, Vitória.
Ele acrescenta que está planejando a construção de uma nova cadeia. Ramkalawan admite que “a situação da droga é muito ruim”.
“Neste momento, com relação ao consumo de heroína, Seychelles é o primeiro do mundo por habitante”, afirma o presidente. “E esta não é uma estatística que me dê grande prazer pessoal.”
É dia de visita na prisão. Jude Jean está preso por roubo e aguarda sua mãe.
A sala da família fica no lado de fora. É um quintal de concreto com mobília de plástico, rodeado por arame farpado.
Jude é agradável – caloroso e amigável; confiante, mas humilde. Ele também é dependente de drogas.
“Tenho vergonha de dizer, mas você sabe, sou viciado”, ele conta. “E não é fácil.”
Hoje, enquanto se senta, suas pálpebras parecem pesadas demais para ele. Mesmo estando na prisão, ele conseguiu sua dose de heroína de manhã e alguns cigarros de maconha.
Jude entra e sai da prisão há mais de uma década – na maioria das vezes, por roubo, para financiar sua dependência. Sua mãe, Ravinia, precisou lidar com isso e com outra tragédia terrível.
Ela é uma pessoa alegre. Seu sorriso ilumina a sala e sua risada é contagiante. Ela passou anos trabalhando muito, dirigindo uma lanchonete de fast-food, tentando sustentar seus quatro filhos e dar uma vida boa para eles. Mas a heroína levou tudo embora.
Em 2011, o filho mais velho, Tony, foi encontrado enforcado. Sua morte ainda é um mistério, mas ele estava muito envolvido com a heroína.
Ravinia tem certeza da ligação entre a droga e a morte do filho. Ela não acredita que ele tenha posto fim à própria vida. Enquanto fala, ela parece estar a um milhão de quilômetros de distância. A dor e a confusão transfiguram seu rosto.
A mãe de Jude, Ravinia, ficou ao lado do filho, mesmo com o impacto que a dependência de drogas trouxe para ela. — Foto: BBC
Até hoje, ela não entende por que não apenas um, mas dois dos seus filhos seguiram este caminho.
“Mesmo se você me disser para não me culpar, eu tenho que me culpar”, ela conta. Muitas outras mães de todo o país têm esta mesma sensação.
Quando Ravinia encontra Jude, seu humor melhora e seu sorriso resplandece. “Estou feliz por ver você, meu filho”, diz ela, enquanto o abraça com força. “Também estou feliz por ver você, mãe”, responde ele.
Enquanto eles se sentam, ela se dirige à reportagem: “Sabe, nós conversamos, mas eu sei que ele mente para mim às vezes. Nós conversamos, somos amigos!”
Mas a tensão logo aparece e ela começa a chorar. Jude Jean enxuga suas lágrimas e diz a ela: “Seja forte, mãe, seja forte”.
Ravinia é o ponto de apoio do filho. Pode-se ver o quanto ela significa para ele, mas, ao longo dos anos, ele foi uma provação para ela.
“Não temos nada hoje em dia porque tudo se foi. Ele chegou a pegar meu talão de cheques e começou a [emitir] cheques”, ela conta.
“Ele levou tudo… Lembro que, uma vez, não tínhamos nem lençóis. Tudo o que ele via, simplesmente pegava e vendia para comprar drogas.”
Na primeira vez em que Jude foi para a prisão, Ravinia ficou aliviada. Mas a trégua foi curta. Ela conta que foi como se ela o tivesse mandado para “uma escola de criminosos”.
O problema que Seychelles enfrenta com a heroína é um forte contraste com o belo cenário deste paraíso turístico. — Foto: BBC
Enquanto Jude estava preso, sua mãe era também forçada a financiar sua dependência da droga, pois ele “estava usando drogas a crédito”.
Ela conta que “precisava pagar porque eles mandavam pessoas para cobrar o dinheiro” e faziam ameaças. Jude era quem dizia para que eles fossem até a casa dos pais e eles pagariam.
“Eles ameaçam você. Eles dizem que vão matá-lo”, segundo Ravinia.
Jude reconhece sua sorte por ter a mãe que tem.
“Obrigado, mãe, por estar sempre comigo”, ele diz. “Sei que, com você por perto, um dia serei uma pessoa melhor, eu quero ser uma pessoa melhor.”
“Faça isso antes que seja tarde demais”, responde a mãe, em lágrimas.
Jude promete a ela que irá mudar. Ela não se convence, mas não irá desistir dele.
A prisão não é o lugar ideal para a recuperação, mas não é impossível. Existe um programa com metadona, substância que pode ser usada para o tratamento da dependência de heroína, e algumas sessões limitadas de psicoterapia. Mas Jude precisa querer fazer o programa.
A metadona também está disponível para os usuários fora da prisão. Ela é gratuita para qualquer pessoa que se inscrever, considerando o tamanho da epidemia.
Em Vitória, todas as manhãs, uma van branca personalizada com uma janela de atendimento ao público percorre a cidade fazendo diversas paradas. Longas filas se formam com pessoas de todos os tipos esperando para conseguir o remédio.
Surpreendentemente, em um país que foi feito refém da heroína, a metadona é o único apoio consistente disponível para os usuários de drogas.
Mas, para muitos moradores de Seychelles, é apenas uma dose matinal grátis que é incrivelmente perigosa. O uso simultâneo de metadona e heroína pode gerar uma overdose fatal.
Tomar metadona sem um programa de desintoxicação e terapia raramente é uma solução de longo prazo para a recuperação. Mesmo assim, decisões políticas levaram ao fechamento de todos os centros de reabilitação residencial do arquipélago.
O presidente assumiu o poder há dois anos e culpa seus antecessores pela falta da necessária assistência aos pacientes. Ele afirma que a política obstruiu o caminho para tratar da questão no governo anterior.
“Mas nós recebemos uma doação dos Emirados Árabes Unidos para construir um centro de reabilitação adequado. E estamos indo nesta direção”, afirma Ramkalawan.
Jude Jean se inscreve no programa de metadona, esperando que ele o ajude a recuperar-se da dependência de heroína. — Foto: BBC
O problema é muito grave em Seychelles porque as ilhas ficam em rotas de tráfico estabelecidas que vão do Irã e do Afeganistão até o leste africano e a Europa. Mas o presidente Ramkalawan afirma que o problema se ampliou quando um grupo de traficantes iranianos foi preso no país.
“Quando ficaram aqui, eles desenvolveram sua rede”, ele conta.
“Depois disso, havia mais moradores locais envolvidos no comércio de drogas do Irã e, agora, estamos dedicando muitos recursos apenas para combater os barcos iranianos que vêm até as nossas águas para vender seu veneno.”
A heroína chega a Seychelles principalmente de barco, por suas vastas e instáveis fronteiras aquáticas. São mais de meio milhão de quilômetros quadrados de mar territorial, que oferecem fácil acesso aos contrabandistas.
Ao chegarem à terra, a maior parte da droga é vendida em lojas pequenas e improvisadas atrás das casas das pessoas, nos muitos guetos do país.
Basicamente, é uma indústria artesanal e comunidades inteiras estão envolvidas.
Para observar a situação, basta dirigir por cinco minutos para longe de qualquer rua principal e deixar para trás os belos hotéis e os restaurantes caros. A droga está em toda parte e o medo é que o pior ainda esteja por vir.
Pelo menos por enquanto, a heroína ainda é a droga de maior consumo, porque é relativamente barata. Mas existem drogas novas no mercado.
O crack e a metanfetamina estão começando a ser usados e nenhuma dessas drogas pode ser tratada com metadona.
Na prisão, alguns dias depois da visita de sua mãe, Jude Jean decide cumprir sua promessa e tentar novamente a recuperação.
É um grande passo para ele, que tenta se inscrever no programa de metadona da prisão. Mas nem todos conseguem ser aceitos.
Jude chega ao centro médico da prisão visivelmente drogado. Quando a enfermeira faz o exame de urina para detectar heroína, não é surpresa quando vem o resultado positivo.
Ele é instruído a parar totalmente de usar a droga para ser aceito no programa de metadona. Ele concorda. No dia seguinte, entra na fila com seus companheiros e recebe sua primeira dose.
Jude também está inscrito em um programa de psicoterapia para aumentar suas possibilidades de recuperação.
Sua mãe, Ravinia, não tem grandes expectativas. Ela já ficou desapontada muitas vezes antes. Mas está rezando muito para que, desta vez, possa dar certo.
Assista ao documentário “Seychelles, Heroin and Me” (em inglês), que deu origem a esta reportagem, no canal da BBC News África no YouTube.
-Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nz1vd0lmdo
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