Depois de passar pela porta que leva aos consultórios, a ginecologista obstetra veste um jaleco roxo e crocs para enfrentar as consultas com 40 pacientes previstas na agenda do dia.
Onze delas passarão por um aborto legal.
Especializada em medicina materno-fetal, Tien faz seus atendimentos em Jacksonville, uma cidade no norte da Flórida.
No ano passado, ela viajou para Estados como Alabama e Oklahoma para fornecer serviços de aborto a pacientes que vivem em locais que proíbem ou restringem severamente a interrupção da gravidez.
O mapa do acesso ao aborto mudou nos Estados Unidos a partir de junho do ano passado, quando a Suprema Corte eliminou a proteção nacional a esse direito e delegou aos governos estaduais o poder de protegê-lo ou proibi-lo.
Para ajudar a preencher a lacuna causada pela falta de clínicas e médicos especializados no procedimento, Tien se tornou um dos 50 médicos que viajam pelos Estados Unidos para realizar interrupções de gravidez, de acordo com a Federação Nacional de Aborto.
As leis que punem o aborto apresentam aos médicos o dilema de descartar ou adiar o procedimento para prevenir complicações ou evitar a gravidez indesejada, mesmo que seja a melhor maneira de tratar uma paciente, explica Tien.
“As novas leis tiveram um efeito inibidor sobre os médicos e prestadores de cuidados”, diz ela durante um intervalo entre as consultas.
“Quem vai cuidar das pacientes se eles nos perseguem por fazer abortos?”, pergunta de seu consultório, onde estão penduradas na parede as cartas e cartões que suas pacientes lhe escreveram em papel colorido para agradecer o apoio que ela lhes deu durante seus abortos.
“Nosso juramento médico e nossa obrigação ética é prestar cuidados com base em evidências científicas”, afirma. “Mas eles estão nos colocando em uma posição muito difícil se as consequências de nossas decisões forem prisão ou perda de nossa licença.”
Os Estados que proíbem o aborto permitem poucas exceções, como autorizar o procedimento em casos de estupro, incesto ou quando a vida da mãe ou do feto estiver em risco.
Em Idaho, por exemplo, os provedores de assistência médica processaram o procurador-geral do Estado por um posicionamento legal que busca impedir os médicos de encaminhar pacientes para outros Estados que tenham serviços de aborto.
No Texas, profissionais da saúde podem ser processados, assim como familiares, amigos ou quaisquer pessoas que ajudem uma paciente a interromper a gravidez.
“Os médicos vão atrasar ou talvez até negar atendimento por medo de que suas intervenções sejam mal interpretadas de acordo com a lei e incompatíveis com tais isenções limitadas”, diz Tien enquanto come um biscoito, seu café da manhã naquela manhã.
“É um dilema inegociável entre a obrigação de oferecer tratamento oportuno e respeitar leis que não levam em conta as inúmeras nuances da prática médica.”
Durante suas viagens a outros Estados, Tien descobriu que, sob as novas restrições ao aborto, seus colegas têm medo de lidar com sangramentos em uma mulher grávida durante o turno de trabalho.
O sangramento pode ocorrer a qualquer momento durante a gravidez, alerta a especialista. Porém, a forma de manejo depende da semana de gestação em que a paciente se encontra.
“Se uma mulher está perto da data do parto e tem sangramento intenso, a conversa é fácil: recomendamos o parto. Mas se o sangramento for significativo na semana 8, 12, 16 ou 20, o que fazemos?”, questiona.
“Vamos recomendar um aborto para salvar a vida dessa mulher.”
Tien diz que outra conversa que tem acontecido em segredo entre médicos em clínicas e hospitais nos Estados Unidos é o que fazer se a bolsa de uma mulher grávida estourar.
“Muitos médicos me disseram que têm medo de ter que atender, durante o plantão, uma paciente com esse tipo de complicação. E eles não poderão aconselhá-las sobre o padrão de atendimento por medo de serem mal interpretados.”
Além da gravidez indesejada, Tien lembra que o aborto é um tratamento recomendado para pacientes que enfrentam complicações médicas que colocam em risco sua sobrevivência e a do feto.
Nem só os médicos viajam. O mesmo acontece com as pacientes, que são forçadas a procurar serviços de aborto em Estados onde o procedimento é legal ou permitido mais tarde na gravidez.
“Já tive pacientes que me perguntaram: ‘Vou ser presa por fazer um aborto?’”, diz Tien.
A maioria dos Estados mais restritivos está concentrada no sul do país, alguns na divisa com a Flórida ou próximos dela.
A clínica onde Tien trabalha há três anos em Jacksonville pertence à Planned Parenthood, ONG que possui a maior rede de centros de saúde dedicados a serviços de aborto, saúde reprodutiva, educação sexual e planejamento familiar dos Estados Unidos.
Jacksonville é o centro de Planned Parenthood mais próximo de oito dos 14 Estados do país que impuseram o maior número de restrições ao aborto no ano passado.
Em meio às proibições, no ano passado a clínica recebeu pacientes do Alabama, Georgia, Mississippi, Missouri, Oklahoma, Tennessee e Texas, explica Jessica Wannemacher, gerente do centro de saúde.
A equipe de saúde quer que a clínica seja um espaço acolhedor e inclusivo, com retratos de casais trans e homossexuais nas paredes da sala de espera e mensagens que reivindicam o direito da mulher de decidir sobre seu corpo.
Fora da clínica, no entanto, as políticas do Estado da Flórida fomentam a hostilidade contra as pessoas que procuram e realizam abortos.
O governador Ron DeSantis, candidato presidencial às eleições de 2024, aprovou uma lei que veta a interrupção da gravidez após a sexta semana de gravidez, medida que Tien e outros especialistas consideram uma proibição absoluta, já que muitas mulheres não sabem que estão grávidas nesse período.
A Suprema Corte da Flórida ainda deve decidir sobre esta regra. Enquanto isso, o aborto é legal no Estado até a 15ª semana de gravidez.
Se o aborto for finalmente banido após a sexta semana na Flórida, Shelly Tien considerará se mudar para outro Estado.
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