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‘Se não assinar, vai morrer’: a nebulosa história das esterilizações forçadas na Califórnia

today8 de março de 2023 6

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Seu nome ainda era DeAnna Henderson na época, e ela estava na prisão, cumprindo uma sentença de prisão perpétua por tentativa de homicídio.

Em uma consulta médica de rotina, após realizar o exame de Papanicolau, o médico informou que havia detectado “dois caroços com potencial para se tornar câncer” e perguntou se ela queria retirá-los.

“Eu disse a ele, é claro. Parecia uma questão de vida ou morte”, disse a californiana Moonlight Pulido, o nome que adotou, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.



“Fiquei surpresa por ele não ter falado em fazer uma biópsia, mas também não tinha dinheiro para pagar um médico para me dar uma segunda opinião”, admite. Então ela assinou o consentimento sem questionar e passou pelo procedimento.

Dias depois, preocupada com o desconforto e o suor contínuo, uma enfermeira viu o laudo médico dela e soube em que consistia realmente aquela operação: “Fizeram uma histerectomia completa”.

Seu útero, colo do útero e outras partes de seu sistema reprodutivo foram removidos. Ou seja, a esterilizaram.

“A minha alma caiu no chão. Eu fiquei em choque.”

Isso aconteceu em 2005 na Prisão Feminina de Corona, parte do Departamento de Correções e Reabilitação da Califórnia (CDCR). E casos como o de Pulido se repetiram ao longo da década em pelo menos outros três centros do sistema penitenciário estadual.

É o mais recente episódio na história sombria de esterilizações forçadas da Califórnia, um passado que o estado agora está tentando retificar oferecendo indenização às vítimas.

Para “melhorar” a população

“A história de esterilizações contra a vontade ou sem o devido consentimento na Califórnia é extensa e foi registrada em diferentes estágios”, disse Lorena García Zermeño à BBC.

Ela é coordenadora de políticas e comunicação do California Latinas for Reproductive Justice, um dos grupos que lutou durante anos para que o Estado reconhecesse essa prática e aprovasse um programa de reparações.

A primeira dessas fases é a histórica, relacionada à Lei da Eugenia que vigorou na Califórnia entre 1909 e 1979, e cuja aplicação atingiu seu auge na década de 1930.

E é que a eugenia, entendida como um suposto “melhoramento” das características genéticas de uma população por meio da reprodução seletiva e da esterilização, já era praticada nos Estados Unidos antes mesmo da Alemanha nazista.

“No século 20, dos 48 estados dos EUA — porque o Havaí e o Alasca ainda não eram — 32 tinham leis eugênicas que davam às autoridades médicas o poder de esterilizar aqueles que consideravam ‘débeis mentais’ (mentalmente fracos) ou com deficiência intelectual e aqueles diagnosticados com transtornos psiquiátricos”, explica Alex Stern.

Diretora do Laboratório de Esterilização e Justiça Social da Universidade de Michigan, Stern estudou profundamente esse capítulo sombrio da história americana.

“Essas pessoas, que foram internadas em instituições estatais por seus familiares ou após um boletim de ocorrência, passaram por exames para calcular sua idade mental, seu quociente de inteligência, receberam uma pontuação e com base nisso as autoridades decidiram se estavam ‘aptas’ ou não a reproduzir”, continua.

Após minuciosa revisão dos registros e dados do estado, a equipe de Stern estimou que das 60 mil esterilizações realizadas nacionalmente sob as leis de eugenia, 20 mil ocorreram na Califórnia. Uma em três.

“Era o Estado mais agressivo, e tinha a ver com o fato de as elites, que eram principalmente WASPs (sigla usada para definir os brancos, anglo-saxões e protestantes em inglês) e com muito poder no legislativo e as universidades, eles tinham uma visão muito concreta de como queriam que fosse o estado”, diz Stern.

Usando técnicas estatísticas, sua equipe descobriu um padrão: a prática afetava “desproporcionalmente” os latinos, principalmente as jovens latinas.

“Uma latina que estava em uma instituição em (condados de) Sonoma ou Napa tinha 59% mais chances de acabar esterilizada do que uma mulher branca”, diz ela.

“E é que em uma época de grande imigração, as elites queriam controlar a reprodução das famílias latinas, as mais férteis, e administrar o futuro biológico do estado”, enquanto promoviam programas para incentivar a reprodução da classe média branca.

Uma das que sofreram com esse procedimento no auge da Lei da Eugenia foi Mary Franco.

Californiana de pais mexicanos, ela foi esterilizada em 1934, quando tinha apenas 13 anos.

Ela foi internada em uma instituição estadual chamada Pacific Colony, no que era então Spadra, hoje a cidade de Pomona, localizada a cerca de 35 quilômetros a leste de Los Angeles.

Stacy Cordova com foto de sua tia-avó Mary Franco — Foto: ARQUIVO PESSOAL

“Um vizinho estava abusando dela, então sua família decidiu interná-la para não piorar a situação e para proteger sua reputação, porque naquela época ninguém era preso por algo assim”, diz sua sobrinha-neta Stacy Cordova à BBC News Mundo.

No centro, depois de medir seu QI e submetê-la a uma série de testes, ela foi rotulada como “débil mental por desvio sexual” e esterilizada, explica Cordova, lendo diretamente o relatório médico original.

“Isso a prejudicou muito. Ao longo da vida ela lamentou por não ter tido filhos e claramente sofreu de depressão, embora nunca tenha sido diagnosticada”, diz ela.

A história foi contada a ela por sua própria tia-avó em 1997, um ano antes de sua morte. Mary Franco faleceu sem nunca saber que o caso dela não foi isolado.

“Parte o meu coração pensar que ela sempre acreditou que o que aconteceu com ela aconteceu porque ela era uma garota má”, lamenta.

A própria Cordova não sabia a dimensão do assunto até que em 2017, um dia enquanto dirigia, ouviu o Dr. Stern falar no rádio. “Tive que sair da rodovia e estacionar. Nunca ouvi falar daquele episódio tão feio e forte da Califórnia.”

Ela entrou em contato com a pesquisadora e logo o Laboratório de Esterilização e Justiça Social lhe enviou o histórico médico de sua tia-avó e os documentos que autorizaram sua esterilização.

“Agora, quando revejo os papéis, percebo que o assunto me toca em muitos níveis: como mexicana-americana, porque aconteceu na minha família e a dividiu, e porque sou professora de educação especial e se isso acontecesse hoje, meus alunos seriam esterilizados”, diz Cordova.

Décadas depois da esterilização de Franco, quando a eugenia já era uma ideologia indissociável do Holocausto e muito criticada por sociólogos, antropólogos e outros cientistas, a Califórnia ainda não havia se livrado dessas práticas.

De fato, no limiar da revogação da Lei da Eugenia, entre 1968 e 1974, uma série de mulheres foram submetidas, inconscientemente ou sob coação, a intervenções que as impediriam de voltar a ter filhos.

Aconteceu no Los Angeles-USC Medical Center, um hospital administrado pelo condado.

As esterilizações sob coação ou sem o devido consentimento ocorreram no Los Angeles-USC Medical Center na década de 70 — Foto: GETTY IMAGES

“Naquela época, a superpopulação era uma preocupação muito grande”, diz Virginia Espino, historiadora especializada em políticas de controle populacional e injustiça reprodutiva, que estudou o caso em profundidade.

Em 1968 um livro intitulado The Population Bomb (A bomba populacional) e que incluía frases como “a batalha para alimentar toda a humanidade está perdida” ou “milhões de pessoas morrerão de fome”, havia se tornado um best-seller.

Em 1969, o presidente Richard Nixon, após alertar o Congresso de que no ano 2000 haveria mais 100 milhões de americanos, ordenou a formação de uma comissão para estudar o “problema”.

E muitos hospitais públicos receberam centenas de milhares de dólares federais para programas de planejamento familiar que incluíam esterilizações.

Mas as coisas fugiram do controle em alguns estados, onde velhos preconceitos racistas e elitistas foram reforçados por novas preocupações com a superpopulação e a pobreza, e acabaram afetando mulheres pobres, especialmente as não brancas.

No caso de Los Angeles, a barreira do idioma e uma maternidade lotada foram adicionadas à equação.

“O que descobri com minhas pesquisas é que muitas pacientes que vieram para o parto e não puderam ter um parto natural foram coagidas, encurraladas ou enganadas a também desistir de sua fertilidade quando assinaram o consentimento para uma cesariana”, diz Espino.

“E para algumas eles sequer explicaram o que estavam aceitando.”

‘Se você não assinar, vai morrer’

Foi o caso de Melvina Hernández, que chegou ao Los Angeles-USC Medical Center com 23 anos e sem falar uma palavra em inglês.

Disseram que ela precisava de uma cesariana de emergência, mas que ela precisava assinar alguns papéis primeiro.

Ela respondeu em espanhol que não, não podia porque o marido não estava no local.

“Se você não assinar, vai morrer”, disse a enfermeira, segurando um documento em inglês.

“Então ela pegou a minha mão e me fez assinar”, conta Hernández no documentário de 2015 “Chega de bebês”, coproduzido por Espino e dirigido por Renee Tajima-Peña.

A criança nasceu saudável. Hernández só descobriria quatro anos depois que suas trompas de Falópio, que ligam útero e ovário, haviam sido ligadas.

Em 1975, ela e outras nove mulheres entraram com uma ação coletiva contra o hospital, argumentando que lhes fora negado o direito constitucional de ter filhos.

Elas fizeram isso representadas pela jovem advogada Antonia Hernández e apoiadas pelo já poderoso movimento chicano, especialmente por mulheres ativistas, que estava desenvolvendo sua própria identidade política e feminismo.

Apesar das manifestações fora do hospital e da pressão da opinião pública, elas perderam o julgamento. O juiz não pôde determinar responsabilidades.

“Não conheço ninguém que tenha forçado o planejamento familiar a nenhum grupo em particular… Acho que qualquer mulher merece o direito de decidir”, disse Edward J. Quilligan, diretor da ala de maternidade do centro médico, no documentário.

No entanto, foram aplicadas certas regulamentações para evitar que isso acontecesse novamente, como a proibição de solicitar consentimento durante o parto ou sob efeito de anestesia, além da determinação de que houvesse formulários de consentimento também em espanhol.

E em 2018, o Conselho de Supervisores do Condado de Los Angeles emitiu um pedido formal de desculpas às vítimas dessas esterilizações.

“Eles nos disseram que não ia acontecer, porque o hospital nunca reconheceu nenhuma irregularidade. Mas aconteceu, e foi muito importante”, diz Espino.

Apesar de a Lei da Eugenia ter sido revogada décadas atrás, uma auditoria estadual revelou que 144 mulheres encarceradas em quatro prisões da Califórnia foram esterilizadas entre 2006 e 2010 com pouca ou nenhuma evidência de aconselhamento ou tratamentos alternativos.

E um estudo posterior identificou outras 100 vítimas no final dos anos 1990.

Mais uma vez, os afetados eram predominantemente latinas e americanas negras.

Em razão disso, a legislatura estadual aprovou uma lei em 2014 que proibia esterilizações em prisões para fins contraceptivos.

Isso deu impulso à luta de uma série de organizações que vinham exigindo justiça sobre o tema há algum tempo.

Em 1º de janeiro de 2022, entrou em vigor um programa de reparação de US$ 4,5 milhões para as afetadas, o terceiro no país depois da Carolina do Norte (2013) e da Virgínia (2015).

“A Califórnia está empenhada em enfrentar esse capítulo sombrio de seu passado e abordar o impacto que essa história vergonhosa tem sobre os californianos até hoje”, disse o governador Gavin Newson ao assinar a lei sobre o programa.

Ativistas chicanas apoiaram o processo contra o Los Angeles-USC Medical Center — Foto: GETTY IMAGES

“Embora nunca possamos reparar totalmente o que eles sofreram, o estado fará todo o possível para garantir que as sobreviventes dessas esterilizações injustas recebam uma compensação.”

A iniciativa, gerida pela Junta da Califórnia para Compensação de Vítimas, inclui sobreviventes da era histórica e aquelas esterilizadas no sistema prisional estadual.

Não inclui, no entanto, as mulheres que perderam a fertilidade no Los Angeles-USC Medical Center na década de 1970.

O fato de terem ido ao hospital, administrado pelo município, por vontade própria torna esses casos mais complicados, concordam as fontes consultadas para esta reportagem.

Porém, as fontes também concordam que essas mulheres precisam ser compensadas, mas apontam que o programa atual é um bom ponto de partida sobre o tema.

A busca por sobreviventesQuando a lei de compensação foi aprovada, no verão de 2021, as organizações estimavam que havia 455 sobreviventes de esterilizações eugênicas e 244 entre aquelas que passaram por isso na prisão.

“Mas diante do que aconteceu nos outros estados que tinham esquemas semelhantes, onde apenas 25% das afetadas elegíveis pediram indenização, projetamos que apenas cerca de 157 pessoas acabariam recebendo o dinheiro”, diz García Zermeño, da California Latinas for Reproductive Justice.

Então fizeram uma chamada de urgência para que as afetadas ainda vivas fossem localizadas. “Cada ano que passa perdemos 100 do primeiro grupo por causa da idade avançada.”

Após um ano de buscas, em janeiro de 2023, de 310 pedidos, o estado havia aprovado 51, rejeitado 103, descartado 3 como incompletos e outros 153 estavam em andamento.

“Tentamos encontrar o máximo de informações possível e, às vezes, apenas temos que esperar que outros encontrem mais detalhes por conta própria”, disse Lynda Gledhill, diretora executiva do Conselho de Compensação de Vítimas da Califórnia.

“Às vezes, simplesmente não podemos verificar o que aconteceu.”

“Tanto dinheiro… mas tão pouco.”

Entre as que já receberam indenizações está Pulido.

Depois de ser solta em liberdade condicional em janeiro de 2022, ela contatou a organização Coalizão da Califórnia para Prisioneiras Femininas e reivindicou a sua indenização.

Depois de aprovada, demorou cinco semanas até que ele recebesse os US$ 15.000 (cerca de R$ 77 mil).

“Quando o cheque chegou, tudo o que pude fazer foi sentar, segurá-lo e chorar”, lembra ela, com a voz embargada.

“Fiquei muito tempo assim, observando o número. Nunca tive tanto dinheiro mas, por sua vez, era tão pouco para o que me fizeram…”.

E levou anos até que ela pudesse falar sobre o tema com alguém. A experiência a marcou profundamente.

“Sou uma americana nativa — dos apaches do Novo México — e acreditamos que a Mãe Terra deu às mulheres a capacidade de gerar vida. E esse presente foi roubado de mim, sem minha permissão e sem mesmo meu conhecimento disso”, diz, ainda revoltada.

Hoje aos 41 anos e com um filho, ela diz que a privaram da possibilidade de constituir uma nova família.

“Até hoje, quando ando na rua ou vou às lojas e vejo mães com seus filhos, paro e olho para eles. Nunca mais vou dar vida. É algo que continua me afetando emocionalmente a cada dia.”

Apesar disso, ela tem aproveitado a sua liberdade e enfrenta o futuro com força e tem um novo nome.

“DeAnna (seu nome antigo) teve uma infância difícil, muito trauma pelo que viu, sentiu e como foi tratada. Ela se sentia como se estivesse carregando uma mochila muito grande”, explica.

Ela escolheu seu nome atual porque queria que fosse algo considerado nativo americano. Ela sempre foi influenciada pela lua e “queria pertencer à parte brilhante da vida”, e adotou o sobrenome de solteira e sua mãe.

Moonlight Pulido hoje tem planos, que podem incluir deixar a Califórnia e morar com o filho no estado americano de Illinois.

E também tem uma missão: “Quero dizer a todos aquelas que passaram pela mesma coisa que eu que se manifestem, peçam uma indenização e, se rejeitarem, tentem novamente. Não desistam”.




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Por: G1

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