As Olimpíadas de Paris prometiam ser exemplares – em 2018, o comitê organizador se comprometeu a “fazer respeitar as normas internacionais do trabalho” e impor condições “decentes” para aqueles que ajudarem a capital francesa a realizar o evento. Mas os Jogos já são abalados por um primeiro escândalo no sentido contrário. As denúncias de más condições de contratação de trabalhadores estrangeiros se acumulam desde o ano passado.
Moussa e seus colegas são um exemplo desses estrangeiros que afirmam estar sendo explorados na construção da Vila Olímpica do evento, na cidade de Saint-Denis, na periferia norte de Paris.
“Nós estamos aqui, não temos visto, e estamos trabalhando numa obra que não é qualquer uma: são as Olimpíadas de 2024 em Paris. Se a gente não pode vir por alguma razão, a gente não recebe nada”, alega.
“Uma vez eu estava doente e perguntei o que aconteceria se eu não viesse. Me disseram que pegariam outra pessoa para o meu lugar. Temos esse medo o tempo todo, porque se eu perco o meu trabalho, como vou fazer para viver? Por causa disso, mesmo se a gente fica revoltado, a gente acaba aceitando”, denuncia, em entrevista à reportagem da RFI.
Moussa recebe € 80 (cerca de R$ 440) por dia trabalhado, durante o qual maneja máquinas perigosas, limpa o canteiro de obras e carrega sacos de cimento nas costas quando a grua tem uma pane. Ele vive há 15 anos na França, onde já trabalhou em serviços como limpeza, restaurantes e, por fim, construção civil.
“Somos nós mesmos que temos que nos preocupar com a segurança, nós mesmos que temos que trazer as roupas do trabalho e até o capacete. Em geral, é o patrão que tem que fornecer todo esse material”, complementa outro operário, Daouda.
“Todo mundo sabe o que está acontecendo, mas ninguém diz nada. Eles querem pedreiros baratos e pegam pessoas como eu: os negros, os árabes, portugueses ou turcos”, afirma Moussa.
Trabalhadores em situação ilegal viraram tabu nas obras dos Jogos Olímpicos de 2024 — Foto: AFP – EMMANUEL DUNAND
Ao perceberem a desigualdade de condições de trabalho em relação aos colegas com o visto em dia, os dois procuraram um sindicato local, em setembro passado. O sindicalista que os recebeu, Jean-Albert Guidou, alertou as autoridades responsáveis e a imprensa – mas desde então, pouco mudou, afirma.
“Essa é a realidade da maioria dos trabalhadores que são terceirizados nas obras pela França, seja para os Jogos Olímpicos ou outras. É dessa maneira que o setor da construção civil está estruturada hoje”, garante.
“As grandes empreiteiras pegam uma parte da mão de obra dessa forma, em especial os operários menos qualificados.”
Segundo Guidou, ao optarem pela ilegalidade, as construtoras acabam tendo vantagens como não pagar indenizações por acidentes de trabalho e pagar menos encargos sociais. “Ao empregar trabalhadores sem documentos, eles colocam nas costas deles todas as responsabilidades. E assim, aumentam seus lucros”, aponta o sindicalista, afirmando que a fiscalização e multas existentes não parecem ser suficientes para dissuadir essa prática.
À espera da regularização
Depois da divulgação dos casos de Moussa e Daouda, em dezembro, os dois foram simplesmente dispensados do trabalho e encontram-se atualmente desempregados, à espera da legalização. Outros 16 trabalhadores conseguiram ser regularizados, mas os critérios para essa decisão foram vagos.
Procurada, a Solideo, órgão público responsável pelas obras dos Jogos de Paris, acusa as empresas terceirizadas de não cumprirem as suas obrigações.
“Nós fazemos contratos com empresas que têm os seus funcionários. O mestre de obras tem uma obrigação de vigilância, mas quando a empresa terceirizada oferece informações incompletas ou erradas sobre os trabalhadores, é extremamente difícil para o mestre de obras ficar por dentro da realidade”, alega Antoine du Souich, diretor de estratégia e inovação do estabelecimento.
A inspeção do trabalho criou uma unidade especializada, que verifica quase um local por dia, há dois anos. Em junho, nove trabalhadores irregulares foram identificados em uma obra cuja entidade contratante era a própria Solideo.
O Ministério Público de Bobigny abriu uma investigação preliminar por “trabalho clandestino” e “emprego de estrangeiro sem visto em quadrilha organizada”.
“Escrevemos ao procurador de Bobigny para informar que queremos entrar com processo contra esses patrões sem escrúpulos”, declarou na semana passada o diretor-geral da Solideo, Nicolas Ferrand, destacando a missão das Olimpíadas de Paris de “serem um exemplo”.
O governo francês pretende criar uma autorização de residência para “profissões sob tensão”, que poderia ajudar a por um fim a este mecanismo de exploração da mão de obra estrangeira. Jean-Albert Guidou já acompanhou cerca de 30 trabalhadores nos Jogos em processos de regularização.
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